segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O anti-revolucionário

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Passados mais de 120 anos, ler Fastos da ditadura militar no Brasil é um exercício de estranhamento e melancolia, pois essas páginas proféticas antecipam os vícios das nossas lideranças políticas.

As mudanças políticas da história brasileira assemelham-se em alguns pontos: começam de maneira histriônica, assumem caráter fantasioso, jamais realizam o prometido e… enriquecem seus protagonistas. Apresentado desta forma, tal conjunto parece uma generalização espúria, mas o leitor apartidário sabe que ele guarda certo fundo de verdade. E de 1889 até hoje, em nosso complexo período republicano, deve-se adicionar a essas características uma recalcitrante tentação ditatorial.
A república, aliás, nasce sob o signo da ditadura: da “proclamação” de 15 de novembro — eufemismo típico da nossa nomenclatura histórica, que substitui, neste caso, a palavra “golpe” — à constituição promulgada em fevereiro de 1891, realiza-se uma única eleição, para escolher os membros da assembléia constituinte, pleito que as oligarquias dos estados manipulam e cujos resultados as chamadas mesas eleitorais falsificam. O país teria novas eleições, igualmente manipuladas, apenas em 1º de março de 1894, quando é escolhido para a presidência Prudente de Morais. Até sua posse, em novembro do mesmo ano, a balbúrdia se instala: Deodoro da Fonseca comanda o governo provisório; a seguir, é nomeado presidente pela assembléia constituinte; fecha o congresso meses depois; finalmente, entre golpes e contragolpes, renuncia em favor de seu vice, Floriano Peixoto. Este apenas dá continuidade à ditadura, chegando a depor governadores estaduais, às vezes com uso da força. A Revolução Federalista — na verdade, uma guerra civil — começa em fevereiro de 1893; em setembro do mesmo ano, com a Revolta da Armada, o exército se divide. Apesar da crise disseminada por todo o país, parcela dos militares não quer eleições, mas Floriano, que depende do apoio dos paulistas, vê-se obrigado a convocar o pleito que elegerá Prudente de Morais. A guerra civil só terminaria em 1895.
Durante os primeiros meses da república, entre novembro de 1889 e junho de 1890, um brasileiro residente na Europa escreve, utilizando o pseudônimo de Frederico de S., seis longos ensaios sobre o golpe militar e seus desdobramentos. Publicados na Revista de Portugal, que pertencia a seu amigo íntimo, o escritor Eça de Queirós, os textos, reunidos sob o título de Fastos da ditadura militar no Brasil, são paradigmas do melhor publicismo, análise cética, arguta e irônica da ditadura que transformou o país politicamente estável numa farsa cujos principais personagens — exatamente como nos dias de hoje — são a demagogia, o empreguismo e a corrupção.
Sob a assinatura de Frederico de S. escrevia o fazendeiro, empresário, banqueiro e bon vivant Eduardo Paulo da Silva Prado, que inspirou a Eça de Queirós o personagem Jacinto, de A cidade e as serras. Poucos conseguiram ser panfletários tão geniais como ele — um “reacionário magnífico”, afirmou Wilson Martins. O curioso, no entanto, é que jamais, até o golpe republicano, ele se interessara pela política nacional, ainda que fosse estudioso da nossa história. Capistrano de Abreu, também seu amigo, lembra, no belo perfil que escreveu sobre Eduardo, em 1901, sua “repulsão” à política. Era conservador, sem dúvida, mas de um tipo especial, ainda segundo a definição de Capistrano:
Em seu monarquismo entravam elementos muito diversos. Humilhava-o a inauguração de levantes e pronunciamentos militares vigentes na América espanhola, do que o Brasil se tinha mantido imune; chocava seus instintos de artista ver abolida uma instituição antiga, a única antiguidade americana, elo que prendia uma cadeia ininterrupta de nove séculos; indignava-o a indiferença, a bestialização dentro do país; ofendia-o a ironia do estrangeiro; e em todos estes sentimentos confirmou-o o rumo que assumiam as coisas.
Tornou-se publicista, dessa forma, por acaso, premido pelos fatos e por um agudo senso ético. E sua oposição à ditadura o levaria a escrever outro livro, A ilusão americana, publicado durante o governo Floriano Peixoto, que decreta sua prisão e manda confiscar a obra. Prado, à época residindo na Fazenda do Brejão, em São Paulo, fugiu a cavalo para a Bahia e, de lá, novamente à Europa.
Risada universal
Passados mais de 120 anos, ler Fastos da ditadura militar no Brasil é um exercício de estranhamento e melancolia, pois essas páginas proféticas antecipam os vícios das nossas lideranças políticas, revelando desalentadora verdade: as piores notícias que encontramos na mídia não são novas, mas apenas a repetição bolorenta de crimes e abusos praticados desde sempre. Ao mesmo tempo, a obra oferece a narração das conseqüências do golpe republicano no calor da hora, sem meias palavras e, melhor, sem o distanciamento histórico e ideológico dos livros didáticos ou das teses esquerdistas, em que jamais se lerá o que de fato aconteceu:
Todas as instituições representativas estão abolidas. A liberdade do cidadão está confiscada. Hoje, no Brasil, não há tribunais, não há leis que protejam o indivíduo contra a violência quando ela vem do governo. O cidadão é preso, deportado, sujeito a todas as agressões oficiais, sem ter recurso nenhum contra elas. O poder armado dos soldados e dos marinheiros não tem outro limite além da sua vontade. E o regime da suspeita, da delação, as cenas de perseguição política, cidadãos eminentes transportados pelas ruas entre baionetas, espetáculos desconhecidos da população brasileira, tudo mostra que está destruída a civilização política do país.
O governo não se contenta em prender e banir centenas de pessoas, mas também censura ou empastela os jornais que ousam demonstrar imparcialidade e dar voz à oposição. E o discurso dos golpistas — repercutido pela parcela subserviente da imprensa — é o mesmo de todos os revolucionários: quem se opõe a nós, opõe-se à pátria; “o Governo Provisório respeitará todas as opiniões, contanto que não sejam contrárias às do povo, do exército e da marinha”; a revolução — que não passou de uma quartelada — busca a “salvação pública”; a minoria que toma o poder, diante do silêncio abobalhado da população, governa por decreto, legisla “com frenesi”, altera “as relações sociais, políticas e jurídicas a seu único e bel-prazer”; institui-se o “absolutismo militar”. Eduardo Prado sintetiza o estupor dos que se mantêm lúcidos:
[...] Hoje, o habitante do Brasil não sabe a transformação que um ministro quis dar às leis senão pela surpresa que experimenta, pela manhã, ao ler nos jornais um decreto que altera subitamente as mais importantes reações sociais. E cada dia os fatos provam brutalmente que o poder tudo pode. É portanto natural que cresça entre o povo o temor de quem tem um poder tão absoluto; do temor passa-se à lisonja, da lisonja desce-se à abjeção. Os governados aviltam-se. Os governantes abusam.
E completa, em seu último artigo, ainda falando da perene chuva de decretos: “Aquilo já não é militarismo nem ditadura, nem República. O nome daquilo é carnaval”.
Mas como se comportavam os grandes revolucionários, os supostos salvadores da pátria? A pena implacável do polemista relata o que os livros de história escondem:
O militar que por sua própria deliberação tomou o lugar de chefe de governo marcou a si mesmo um ordenado superior ao de todos os presidentes de república do mundo, exceto o da República Francesa. E o país ainda lhe deve ficar grato, porque, se ele quisesse levar o Tesouro Nacional para a sua casa, ninguém o poderia impedir. Os cidadãos que se constituíram ministros dobraram os ordenados antigos de ministro. Estes simples atos indicam claramente que o Governo Provisório, em matéria de delicadeza e de escrúpulo, se parece com as demais tiranias militares da América. Os prets dos soldados, os soldos dos oficiais, que criaram a nova ordem de coisas, foram aumentados, e foram constituídas novas pensões militares. Um suntuoso palácio foi comprado para a residência do marechal chefe do Estado.
Eduardo Prado insiste que se faça a conta de quanto recebem os membros da numerosa família de Deodoro, agora empregada e “largamente remunerada pela ditadura”. E em abril de 1890 ataca novamente: “As pensões a militares e, de vez em quando, a alguns civis, enchem colunas e colunas do Diário Oficial; as comissões a amigos tanto no Brasil como no estrangeiro, as gratificações, as aposentadorias sucedem-se em conto”. E não deixa de apresentar, com todas as cores, o lado grotesco, digno de zombaria, dos que, subitamente, podem fazer do Estado o quintal de suas casas, o espelho de suas egolatrias:
A ditadura, quando não se notabiliza pelo crime, distingue-se pela vaidade. É o governo dando uniformes fantasiosos e teatrais ao exército; o ministro da Marinha, ordenando que todos os oficiais tenham os mesmos cordões de ouro dos generais; o governador do Rio de Janeiro viajando com pompa soberana, precedido de clarins, recebido por uma sociedade musical chamada Lira dos conspiradores, para espantar pelo fausto um país acostumado à simplicidade de Dom Pedro II; o ministro da Marinha recebendo dos repórteres navais da imprensa os bordados de sua farda de almirante e regando com champanhe a dádiva; o retrato do sr. Rui Barbosa, ministro da Fazenda, estampado nos novos bilhetes de banco, honra que nenhum país seriamente republicano deu a nenhum cidadão vivo, e que nenhum outro estadista ousaria aceitar…
Mas nosso publicista não se satisfaz com a mera denúncia dos abusos. E ainda que seu estilo contribua para demonstrar a gravidade dos fatos, a melhor parte vem logo a seguir, quando analisa e julga, sob o ponto de vista da ética, o que acabou de relatar:
Todas estas vaidades e todas estas exagerações pertenceriam somente ao domínio do burlesco se não revelassem um estado político lastimável, um verdadeiro retrocesso na dignidade e no decoro dos costumes políticos. Todo o desequilíbrio moral é funesto em suas conseqüências, embora risível nas suas formas; mas, quando revelado por quem governa, é uma verdadeira calamidade nacional. Nos negócios interiores de uma Nação a vaidade, o capricho, a ignorância e a boêmia são sempre fatais.
Conclusões que servem com perfeição à nossa história republicana, chegando à Brasília da última década.
Meses depois, Prado escreverá: “O militarismo de 15 de novembro passou depressa da traição para o ridículo”. E no ensaio As finanças e a administração da ditadura brasileira, sentencia: “A ditadura pode suster a execução das leis, deixar de lado o código. Não pode, porém, conter a risada universal”.
General incruento
Esta última citação exemplifica as principais qualidades estilísticas de Prado: objetividade mordaz e argumentação cristalina. A 30 de novembro de 1889, resume o que representa um governo comandado por militares: “Hoje, quando o marechal Deodoro pensar de um modo e os seus ministros de outro, quem cederá? A espada, que não tremeu ao ser desembainhada contra as instituições que o general julgara defender, não precisará mesmo reluzir de novo para fazer emudecer e sumir-se debaixo do pó da terra os novos ministros, talentosos patriotas, mas patriotas desarmados”. No ensaio publicado em 9 de janeiro de 1890, diante da procrastinação das eleições, conclui: “Falam na dificuldade de organizar as novas listas eleitorais, homens que não acharam difícil o mudar em uma manhã todas as instituições do seu país!”. Comparando as repúblicas brasileira e norte-americana, assevera: “[...] Entre elas medeia mais do que um século, mais do que a distância que vai de Boston ao Rio de Janeiro. Divide-as o imenso abismo que separa um Washington de um Deodoro da Fonseca”. Ao recordar a elogiável abolição dos escravos, que transformara os habitantes do país, sem diferenças, em homens livres, elogia Pedro II e lamenta: “A tirania militar entendeu de outro modo a sua missão; e, hoje, se viver sem leis, sempre à mercê do capricho alheio, é viver sem liberdade — pode-se afirmar que, no Brasil, não há senão escravos”. Com delicioso sarcasmo, ilustra, em junho de 1890, no que se transformara a política nacional: “Os partidos políticos, hoje, só poderão galgar o poder agarrados à cauda do cavalo de um general” — mutatis mutandis, a situação do país parece ter evoluído: dos rabos dos cavalos passamos, hoje, à cauda de uma estrela ou à barba de um demagogo…
Mas Eduardo Prado está longe de ser lacônico. Ele nos oferece páginas memoráveis, em que escarnece de republicanos tidos como proeminentes: Benjamin Constant, Rui Barbosa e Quintino Bocaiúva. Sobre este último, ministro das Relações Exteriores de 1889 a 1891 e negociador do Tratado de Montevidéu (cujo objetivo era solucionar a Questão das Missões com a Argentina), escreve críticas tão contundentes e acertadas que o próprio congresso não aceita ratificar os termos do acordo — a contenda seria resolvida apenas em 1895, graças ao brilhantismo do Barão de Rio Branco.
Sobre o ministro da Fazenda, a quem dedica inúmeras tiradas irônicas, comenta:
[...] Cada vez que o sr. Rui Barbosa telegrafa à Europa, a baixa é certa nos fundos brasileiros. A velha imagem da espada de Brenno fazendo baixar a concha da balança pode ser substituída pelo telegrama do sr. Rui Barbosa. A algaravia financeira que ele escreveu no seu funesto relatório veio tirar as últimas ilusões aos que esperavam ainda na competência do ministro das finanças do sr. Deodoro.
E ao analisar um trecho da logomaquia ruiana, decreta: “Toda esta literatura quer dizer que o sr. Rui Barbosa e seus amigos andam contentes de si mesmos e seguros do futuro. Podia isto ser dito mais simplesmente. O sr. Rui Barbosa é, porém, o homem das amplificações literárias e bancárias”.
No que se refere a Benjamin Constant, ministro da Guerra e, logo depois, da Instrução Pública, chama-o de “incruento general-de-brigada”, por ter participado da Guerra do Paraguai com “a rapidez mas não o brilho do relâmpago”:
Trabalhou muito no cargo de ministro da Guerra este felicíssimo militar! Entrou tenente-coronel e, ao cabo de cinco meses, saiu general-de-brigada e grã-cruz de São Bento de Aviz. Tudo isto foi conquistado rápida e incruentamente, sem prejuízo dos parentes, que receberam aceleradas promoções e vistosas condecorações. O sr. Benjamin Constant é positivista ortodoxo, mas há meio de acomodar-se sempre a gente com o céu, com o orçamento, e até com São Bento e Augusto Comte.
Aborreceu a traição
As palavras do anti-revolucionário vaticinam a desilusão das inteligências que, no primeiro momento, apoiaram o golpe. Anos depois, em agosto de 1909, durante a curta presidência de Nilo Peçanha, Euclides da Cunha — republicano convicto desde os tempos de estudante na Escola Militar, onde foi aluno de Benjamin Constant — escreveria a Otaviano Vieira:
[...] Tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os mirabeauxandam aos pontapés. Em cada esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais… É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem.
Defensor da monarquia, Prado não hesita, contudo, em criticá-la, culpando-a pela revolta militar, o que, em sua opinião, não diminui os erros dos golpistas: dentre eles, o de terem instituído um federalismo que abandonou os estados nas mãos das oligarquias locais, reforçando as práticas mandonistas e coronelistas da nossa classe política. E não seria exagero afirmar que a instabilidade republicana seguiu repercutindo através do tempo, condenando-nos a seguidas crises institucionais e a vários períodos de sinistra memória, como, por exemplo, o Estado Novo.
O que costuma ser um gênero menor, crônica jornalística banal, Eduardo Prado transformou — graças ao estilo, à inteligência e ao desassombro — em documento de inconformismo e revolta. Morreu jovem, aos 41 anos. No último parágrafo de Fastos da ditadura militar, ele gravou: “Ninguém duvidará [...] de que quem escreve estas linhas só atacou os dominadores do Brasil porque, como homem civilizado e do seu século, aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania”. Sete anos antes de sua morte, Eça de Queirós lhe escreveu: “O que posso dizer afoutadamente é que V. nos faz sempre a mesma falta, e que não há frase mais repetida entre nós que: Se o Eduardo cá estivesse”. Qualquer um desses trechos poderia servir de epitáfio ao seu túmulo, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no qual emerge, da base de granito, uma coluna rósea cujo fuste, partido ao meio, representa a existência ceifada prematuramente — a sobriedade, na vida e na morte, foi a marca de quem afrontou as leis de exceção e as macaquices dos poderosos.

Trecho de Fastos da ditadura militar no Brasil:O sr. Benjamin Constant, que, sendo militar, não depende do exército e, sendo brasileiro, se coloca acima dos seus compatriotas, disse nada querer da república. É falso. Quis o lugar de ministro da Guerra com poder absoluto, fazendo parte de um governo ditatorial; quis um ordenado duplo do que tinham os ministros do Imperador; sendo um militar sedentário, havendo apenas feito nos acampamentos do Paraguai uma aparição incruenta que teve a rapidez mas não o brilho do relâmpago, o sr. Benjamin Constant quis logo da república uma promoção; e pensam que foi uma promoção regular para o seu posto imediato?

O autor:
Eduardo Paulo da Silva Prado nasceu a 27 de fevereiro de 1860, em São Paulo. Era filho de Martinho da Silva Prado e de Veridiana da Silva Prado, de tradicional família paulista. Faleceu na mesma cidade a 30 de agosto de 1901. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Na época, era colaborador assíduo do Correio Paulistano. Trabalhou como adido na delegação brasileira em Londres. Amigo do Barão do Rio Branco, colaborou da edição de Le Brésil en 1889, obra publicada por ocasião da Exposição Internacional de Paris, comemorativa do centenário da Revolução Francesa. Com o advento da república no Brasil passou a combater, em livros e jornais, os atos praticados pelo governo. Escreveu também em A década republicana, obra na qual colaboraram os mais destacados monarquistas brasileiros. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Deixou os livros: Viagens (1886-1902); Fastos da ditadura militar no Brasil (1890); Anulação das liberdades públicas (1892); A ilusão americana (1893); III Centenário de Anchieta (1900); e Coletâneas (1904-1906).


Publicado no jornal literário Rascunho.
Rodrigo Gurgel é escritor, editor e crítico literário.
Fonte: Midia sem Máscara

sábado, 2 de novembro de 2013

E como não...

E como não impressionar-se
Com o orvalho perolado
Marchando sobre a pétala
Qual lágrima após o sonho findado

E como não supreender-se
Em sentimentos amordaçados
Ao longo de anos de silêncios
Indevidos e admoestados?

Como não agora dizer
O que já devia ser dito em brados
E como e por que eu não diria

Se és o sul e o norte, em forma de poesia?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

FEIXES DE ALMA E LUZ

Porta aberta para as almas
Para vozes que tateiam faces
Com cantos que de canto em canto se fazem em luz
Alma aberta como portas
Em face do canto que produz
Pranto que produz a lágrima que pelo sol perfura
Colhe o prisma que se reflete
Que em mil cores se reproduz
Que a princípio a retina dilata,
Que expande o que os tímpanos captam,
Que pela forma da minha arte
Ao todo, não em parte
Abre tua alma em lágrimas
Que se fez de gota em gota

Feixes de luz. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Quero o país de volta - Entrevista com Bruno Tolentino

O poeta que passou trinta anos na Europa se diz horrorizado com o baixo nível, acha que o país regrediu e parte para a briga



Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino, menino carioca de família aristocrática, gosta de dizer que é de um tempo em que rico não roubava. O avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal e seus tios eram intelectuais, como os escritores Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquinio dos Santos, além dos primos Barbara Heliodora, a crítica teatral, e Antonio Candido, o crítico literário. Ainda era analfabeto em português quando duas preceptoras, mlle. Bouriau e mrs. Morrison, o ensinaram a conversar em francês e inglês dentro de casa. Tolentino saiu do Brasil em 1964 e, no estrangeiro, ocupou-se de árvores genealógicas de origem erudita. Orgulha-se de ter filhos com mulheres descendentes do filósofo Bertrand Russell e do poeta Rainer Maria Rilke. O mais novo, Rafael, de 8 anos, nascido em Oxford, Inglaterra, onde o pai ensinou literatura durante onze anos, é filho da francesa Martine, neta do poeta René Char. Bruno publicou livros de poesia em inglês e francês. Em 1994, lançou no Brasil As Horas de Katharina, e no fim do ano passado mais dois, Os Deuses de Hoje e Os Sapos de Ontem - todos ignorados pela crítica, pelo público e pelos curiosos.
Aos 56 anos, já de volta ao Brasil, Tolentino tem feito força para tornar-se herdeiro do embaixador José Guilherme Merquior, intelectual de boa formação e polemista musculoso. Tem conseguido aparecer. Brigou com os poetas concretos, depois com o que considera máquina de propaganda de Caetano Veloso e sua turma. Em seguida, com os críticos literários e os filósofos, elevando ainda mais o tom numa entrevista publicada por O Globo, duas semanas atrás. Fora do país, Tolentino ensinou em Oxford, Essex e Bristol e trabalhou com o grande poeta inglês W.H. Auden. Conheceu celebridades como Samuel Beckett e Giuseppe Ungaretti. Horrorizado com a possibilidade de ver o filho mais novo crescendo em escolas que ensinam as obras de letristas da MPB ao lado de Machado de Assis, abriu fogo contra o que considera o lado ruim de sua pátria, como explica em sua entrevista a VEJA:


VEJA - Por que tantas brigas ao mesmo tempo? 
TOLENTINO - Para ver se o pessoal cai em si e muda de mentalidade. O Brasil é um país vital que está caindo aos pedaços. Não quero sair outra vez da minha terra, mas não posso ficar aqui sem minha família, que está na França. Não posso educar filho em escola daqui. 

VEJA - Por que não? 
TOLENTINO - Foi minha mulher quem disse não. Educar um filho ao lado de Olavo Bilac, última flor do Lácio inculta e bela, que aconteceu e sobreviveu, ao lado de um violeiro qualquer que ela nem sabe quem é, este Velosô, causou-lhe espanto. A escola que ela procurou para fazer a matrícula tem uma Cartilha Comentada com nomes como Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e Caetano. O menino seria levado a acreditar que é tudo a mesma coisa. Ele nasceu em Oxford, viveu na França e poderá morar no Rio de Janeiro. Ele diz que seu cérebro tem três partes. Mas não aceitamos que uma dessas partes seja ocupada pelo show business. 

VEJA - Qual o problema? 
TOLENTINO - Minha mulher já havia se conformado com os seqüestros e balas perdidas do Rio, mas ficou indignada e espantada pelo fato de se seqüestrar o miolo de uma criança na sala de aula. Se fosse estudar no Liceu Condorcet, em Paris, jamais seria confundido sobre os valores do poeta Paul Valéry e do roqueiro Johnny Hallyday, por exemplo. Uma vez entortado o pepino, não se desentorta mais. Jamais educaria um filho meu numa escola ou universidade brasileira. 

VEJA - Não é levar Caetano Veloso a sério demais? Ele não é só um tema de currículo, entre tantos outros? 
TOLENTINO - Não. Ele está também virando tese de professores universitários. Tenho aqui um livro, Esse Cara, sobre Caetano, uma espécie de guia para mongolóides, e a mesma editora desse livro me pede para escrever um outro, sob o título Caetano Se Engana. É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento não é cultura. 

VEJA - O que você tem contra a música popular? 
TOLENTINO - Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. Não se trata de cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música popular brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se confunde com a erudita. Então, como é que letra de música vai se confundir com poesia? 

VEJA - O senhor não está ressentido por ele ter assinado um manifesto contra um artigo seu sobre uma tradução do poeta Augusto de Campos? No fundo, parece que o senhor está querendo aparecer à custa deles. 
TOLENTINO - Não tenho ressentimento nem ciúme. Nem tenho nada contra quem assina manifesto. Se você vê um amigo seu brigando na rua, o mínimo que pode fazer é ir lá apartar. Foi o que ele fez no caso do Augusto de Campos. Só que assinou um cheque em branco. A princípio achei que ele tinha entrado de gaiato, e lhe dei o benefício da dúvida, sobre uma questão muito delicada de tradução e de cultura que ele não está capacitado para julgar. Nem ele nem Gal Costa. Que intelectuais são esses? Se os irmãos Campos não sabem inglês, imagine eles. 

VEJA - Os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos não sabem inglês? 
TOLENTINO - Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por exemplo, traduziram Rainer Maria Rilke e criaram a frase "ele tem um pássaro", que é literal, mas que em alemão quer dizer que alguém tem uma telha a menos, é meio doido. São péssimos poetas e péssimos escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber. 

VEJA - Por que só o senhor, e não outros críticos, diz essas coisas? 
TOLENTINO - Na República das Letras ainda estamos à espera das diretas já. A usurpação do poder legal por vinte anos deixou-nos seus legados nas patotas literárias que desde então controlam a entrada em circulação, ou a exclusão pelo silêncio, de livros, autores, obras inteiras. Nas redações dos jornais como nas universidades prevalece a censura, e o único critério para sancionar uma obra parece ser o bom comportamento do neófito, sua genuflexão aos ícones da hora. Nossa crítica suicidou-se matando o diálogo, o debate e a polêmica. Mascarados de universitários, esses anõezinhos conseguem dar a impressão de que a inteligência nacional encolheu, que em Lilliput só se sabe da cintura para baixo. Quem já ouviu falar de Alberto Cunha Melo, que vive escondido no Recife, e é nosso maior poeta desde João Cabral? São dele estas palavras: "Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem". Mas José Miguel Wisnik ora é crítico, ora é letrista e compositor, portanto é catedrático. Os violeiros empoleiraram-se nas cátedras e Fernando Pessoa virou afluente da MPB. Não é à toa que até em Portugal os brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhada logo à primeira frase: "Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a banda passou e..." É preciso perguntar dia e noite: por que Chico, Caetano e Benjor no lugar de Bandeira, Adélia Prado e Ferreira Gullar? 

VEJA - Por que o senhor acha os críticos brasileiros ruins? 
TOLENTINO - O que os críticos disseram sobre meus trinta anos de poesia? Só, desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não suficientemente progressista. Que eu, o escritor Diogo Mainardi e - como é mesmo o nome do marido da Fernandinha Torres? - o diretor Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos de gente famosa. Quer dizer, chamam a atenção para a pessoa e não para a obra. E toda pessoa é discutível. Eu sou meio apalhaçado mesmo. A minha biografia é interessante, meio cinematográfica, e assim é como se eu não tivesse escrito nada. Uma espécie de Ibrahim Sued das letras. 

VEJA - Mas o que aconteceu com os críticos para que se tornassem tão incapazes, na sua opinião? 
TOLENTINO - A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. É uma gente venal, vendida, que controla as nomeações para as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco como eu? Todos, de Roberto Schwarz a David Arrigucci, foram formados pelo meu primo Antonio Candido, que é um geriatra nato. 

VEJA - Caramba... Não sobra nenhum crítico brasileiro? 
TOLENTINO - Sobra, evidentemente, Wilson Martins, que não tem lá muito gosto poético, mas enfim... 

VEJA - O senhor também não sobra? 
TOLENTINO - Em vários sentidos. Não tenho onde escrever. Sou herdeiro, e me considero assim, da combatividade crítica de José Guilherme Merquior. Crescemos e fomos amigos juntos, tínhamos idéias convergentes embora nem sempre coincidentes. Quando ele morreu, em 1991, houve um grande suspiro de alívio entre nossos crititicos e poetômanos. Infelizmente ele era embaixador. Eu não sou embaixador de nada. Essa gente está morta de medo de que eu venha a ter uma tribuna. Não me importa ser celebrado lá fora. Não faço falta lá, há muitos outros como eu. Aqui, com esta independência, cultura, erudição e combatividade, não tem outro que nem eu. 

VEJA - Sem embaixada, o senhor vai ser só poeta? 
TOLENTINO - Minha obra poética está basicamente terminada. Escrevi poesia por mais de trinta anos e não conheço nenhum outro poeta, além de Manuel Bandeira, que tenha conseguido escrever bem além dessa média. A partir daí, decai. Estou transferindo o meu esforço para o ensaio. Falar, por exemplo, dos males que a ditadura causou ao país me parece cada vez mais um sintoma do que uma causa. É um sintoma do Febeapá, vem no bojo dele. A imbecilidade já crescia. A ditadura simplesmente institucionalizou a falta de respeito pela realidade, pelo próximo, pela legalidade. A verdade foi substituída pela verossimilhança, a literatura, pela imitação da literatura. 

VEJA - O senhor poderia dar exemplos disso? 
TOLENTINO - Foi Wilson Martins quem levantou essa idéia, ao dizer que as obras de Chico Buarque e Jô Soares eram imitações da literatura. Auden, o Drummond lá dos ingleses, também dizia algo parecido. A gente lia um cara e concluía que ele era muito ruim. Auden discordava, dizendo que ele era muito bom. "Faz a melhor imitação de poesia que já li", dizia. Parecia piada mas não era. 

VEJA - O senhor acha que a imitação é ruim? 
TOLENTINO - A imitação da literatura se dá quando se fecha no círculo de ferro na modernidade. Ela obriga o leitor a seguir moda, busca efeito imediato, como se tudo começasse por você, naquele momento. A verdadeira literatura está sempre acuando tudo que a precedeu. Quincas Borba, de Machado, contém toda a novelística russa, e também Balzac. Wilson mostrou com muita acuidade e mordacidade que os romances de Chico são uma reedição do nouveau roman, que já morreu. Agora morreu a última representante dele, Marguerite Duras. Conheci toda aquela gente do nouveau roman, Alain Robbe-Grillet, Michel Butor, e saí correndo. Chato existe em todo lugar, não só no Brasil. Mas Wilson foi injusto com a imitação do Jô. É uma coisa que não pretende ser mais do que aquilo mesmo, divertir. 

VEJA - Por que o senhor não vai ensinar o que sabe nas universidades? 
TOLENTINO - Só entro numa universidade disfarçado de cachorro ou levado por uma escolta de estudantes. Sou um vira-lata muito barulhento. Não vão me convidar para nada porque eu quero acabar com os empregos e mordomias deles. Quero que eles passem por todos os exames de Oxford para ver se sabem mesmo alguma coisa. 

VEJA - Então as universidades não servem para nada? 
TOLENTINO - A escola pública desapareceu. A fórmula de sobrevivência do país é a trilogia emprego público, de preferência com aposentadoria acumulada, condomínio fechado e plano de saúde. Esse é o apartheid construído por uma elite analfabeta e totalmente irresponsável que entregou nossa cultura. Nem estou falando da nossa classe média, que tem dinheiro para gastar em boates e shows e sair de lá gargarejando cultura. 

VEJA - O senhor tem acompanhado a produção intelectual das universidades brasileiras? 
TOLENTINO - O departamento de filosofia da Universidade de São Paulo nunca produziu filosofia nenhuma, não por inépcia ou preguiça, mas por um estranho espírito de renúncia parecido ao espírito de porco. Cultivavam a crença de que só poderia nascer uma filosofia no Brasil "ao término de um infindável aprendizado de técnicas intelectuais criteriosamente importadas", como diz um professor de lá. Mais urgente do que filosofar era macaquear os debates dos "grandes centros" produtores de cultura filosófica. O que significava tomar o padrão europeu do dia como norma de aferição do valor e da importância do pensamento local. Imaginando ou fingindo preservar a mente brasileira de uma independência prematura, o que os maîtres à penser da USP fizeram foi apenas incentivar a prática generalizada do aborto filosófico preventivo. Não espanta que, por quatro décadas, o "rigor" (com aspas) uspiano não produziu outro resultado senão o rigor mortis de uma filosofia que poderia ter sido o que não foi. 

VEJA - Mas José Arthur Giannotti escreveu um livro de filosofia, Apresentação do Mundo, que foi muito elogiado... 
TOLENTINO - É, ele escreveu um besteirol sobre Ludwig Wittgenstein saudado em suplementos de várias páginas como marco do nascimento da filosofia no Brasil. É uma audácia depois de Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Pereira da Silva e Olavo de Carvalho. Nós temos uma filosofia nativa, isso sem falar da filosofia de cunho religioso, teológico, que eu não vou citar porque sou católico e vão dizer que estou puxando a brasa para a sardinha da Virgem Maria. Passei cinco meses garimpando nas páginas daquele livro e não encontrei nada que não fosse uma leitura do que Wittgenstein acha da dificuldade lingüística de compreender a realidade. Isso a gente já sabe, a partir do próprio Wittgenstein. Uma filosofia nacional não tem nada a ver com isso. 

VEJA - Tem a ver com o quê? 
TOLENTINO - A cultura filosófica brasileira é quase nula. Nossos professores gastaram décadas lendo Marx, em vez de Husserl. Aqui só dá o tripé Kant, Hegel e Marx. E onde está a grande tradição escolástica que vai de Aristóteles a Husserl? Isso não é lido nem discutido aqui. Mas existe uma filosofia brasileira. Reale e Olavo de Carvalho, que não se formaram em lugar algum, não perderam tempo com essa estupidez. Foram estudar e aprender as tantas línguas que falam. Eu, quando tenho dificuldade com latim, grego ou alemão, é para eles que telefono. 

VEJA - O senhor não está exagerando, sendo duro demais? 
TOLENTINO - Não. Não passei nenhum dia aborrecido aqui. Sempre encontro gente inteligente. Quando cheguei à Europa, não tive nenhum complexo de inferioridade. É verdade que eu conheci em casa o que o Brasil tinha de melhor. Faço parte do patriciado brasileiro. E não via diferença entre Ungaretti e Manuel Bandeira, só de língua. Era a mesma coisa. Não havia um Terceiro Mundo na minha cabeça. Eu, quando pequeno, conheci Graciliano Ramos e Elisabeth Bishop. Só havia gente dessa categoria. 

VEJA - Dá a impressão de que só agora se começou a falar e a escrever besteira no país... 
TOLENTINO - O besteirol, se havia, estava lá longe, nos cantos. Hoje ele está no centro. Tem razões mercadológicas, de dinheiro. Os artistas devem ganhar muito, muito dinheiro, para ir gastar em Miami. Só não é possível que esses senhores usurpem a posição do intelectual. Eles são um formigueiro com pretensão a Everest. 

VEJA - Não é bom para o país ter um intelectual na Presidência da República? 
TOLENTINO - Votei no Fernando Henrique Cardoso porque era uma oportunidade única, desde Rui Barbosa, de ter um intelectual no poder. E o que ele fez na sua primeira entrevista coletiva? Citou Machado de Assis ou Euclides da Cunha? Não. Citou o mano Caetano. Uma coisa tão espantosa quanto Rui Barbosa, se tivesse ganho a eleição, citasse Chiquinha Gonzaga. O Brasil que eu conheci, e do qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o Brasil. Quero saber quem seqüestrou a inteligência brasileira. Quero meu país de volta.

Fonte: Revista Veja

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Só Vaidade.


No fel dos favos que quebram-se nas línguas,
O ardor dos olhos fechados em gritos,
Gotejam lágrimas, licores suaves
A quem esquarteja seus próprios mitos.

No talho na carne que escorrem alísios,
Uníssono silente de uma dor sem ter prantos
Para tantos segredos agora no centro da insígnia
Qual estandarte bradado em cantos.

No cheiro acre, encoberto de vinhos
Dispersa o vinagre que outrora era azeite
O azedume da carne que apodrece e fermenta
Sob o veneno das cobras, qual molhos
Para o próprio deleite.

Na vaidade que vibra, impera, imponente
Fermentam vacilos, erros, enganos
Que outra era certo, agora desliza
Para o cadafalso de juros em eternos prantos.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Sem nenhum talvez


E sem nenhum talvez, resultante tão só
Da tensão impetuosa de um eterno porvir
Materializa-se, não um olhar n'outro
Mas um compasso cardíaco entre ventríloquos
Em uma só harmonia fluindo mais do que beijos...
E sem nenhum porém, talvez eu, um moribundo de outros amores
Ainda com vestígio de chagas talvez vacile,
Pois o amor assim quando puro, assusta a quem nunca amou,
Assusta tal como faminto, com favos de mel nas mãos
Não sabe o que tem, até por os dedos lambuzados na boca.
Paciência pois, eu, sem nenhum porém,
Talvez ainda esteja a provar as chagas
Sem dar-se conta dos favos de mel que repousam nas palmas das minhas mãos.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Cultura, alta cultura, literatura: um Brasil sem referências


ESCRITO POR LORENA MIRANDA | 29 ABRIL 2013 
ARTIGOS - CULTURA

Ao longo de sua história, a humanidade sempre encontrou motivos para caracterizar cada época de seu desenvolvimento como “essencialmente diferente das demais” – pois o mais provável é que assim o fosse.
Cada sociedade – modernamente digamos: cada país – tem uma face peculiar num dado momento do tempo. Isto é a base da refutação daquela crítica segundo a qual “desde sempre o homem lamenta sua condição no mundo; não há nada de novo em se apontar problemas no que quer que seja”. Ora, de fato, a crítica dos arredores é natural à condição do homem de ser racional e desde os primórdios de suas atividades intelectuais os homens se debruçam sobre o problema dos males no mundo. Mas é preciso assinalar este outro fato: cada momento na história – bem como cada geração em cada particular localidade – apresenta problemas que não se confundem com aqueles gerais da época ou com os que vieram antes, embora necessariamente relacionem-se a estes. Por isso não há nada mais legítimo do que os representantes de cada geração, em cada sociedade ou país, dedicarem-se à crítica de seus arredores mais imediatos, pois certamente encontrarão aí algo de novo a que as críticas anteriores não se podiam reportar.
Este texto tem duas premissas: 1) pensar o Brasil de hoje consiste em identificar os particularíssimos problemas que caracterizam nossa presente sociedade e a localizam dentro do momento histórico global; 2) pensar qualquer sociedade consiste enormemente na análise de seus fatos culturais: antes das instituições políticas e das leis, e seguindo o curso do comportamento típico da sociedade – valores, crenças, opiniões – num dado momento do tempo, tem-se, como um espelho deste, a cultura.
Qual o estado da cultura brasileira atual? O que salta aos olhos quando nos fazemos essa pergunta é um fato impressionante: a ausência cabal, no Brasil de hoje, daquilo que se chama alta cultura. Perceba o leitor que aimportância dessa constatação reside em que nela se condensa aquilo que seria o nosso “particularíssimo problema”. Poderíamos igualmente destacar entre nossos males a desonestidade de nossa classe política ou a imoralidade que se vem tentando oficializar legalmente, na esteira de vir ganhando cada vez maior circulação entre o povo. No entanto, esses são problemas que se inserem numa grade de tendências mais ou menos globais. Num país como os Estados Unidos, apesar de o governo estar refém de um programa partidário tão pernicioso quanto o brasileiro, ainda há a dita alta cultura. Mas entre nós… O que se passa?
Entenda-se por alta cultura todas aquelas obras da criatividade humana em que o momento histórico no qual se inserem, bem como os legados da humanidade como um todo, são traduzidos simbolicamente, atendendo a critérios estéticos elaborados pela tradição dos gêneros artísticos; uma obra de arte digna de nota deve remeter-se à tradição que a precede (sejam romances, quadros, peças musicais), não necessariamente filiando-se a ela, mas de algum modo respondendo a ela, ainda que para negá-la. Ora, a principal característica da cultura brasileira atual é um profundo desconhecimento das tradições artísticas, não digo nem do Ocidente, mas mesmo do próprio Brasil, variando da ignorância total ao domínio capenga daqueles critérios estéticos necessários à composição de qualquer obra que almeje um diálogo ativo com os cânones.
Em verdade, associada à parca educação da classe incumbida de produzir nossa alta cultura (a relação de distância quanto às tradições artísticas redunda em falta de educação), verifica-se uma acachapante falta de ambição da parte do artista brasileiro contemporâneo. Isto pode soar contraditório, quando o que mais vemos por aí são homens e mulheres alardeando seus talentos artísticos, seja em revistas culturais (que não são poucas entre nós), em blogs, na televisão ou mesmo pelas ruas.
De fato, a julgar pelas aparências, um marciano que ainda não dominasse em profundidade o conceito de alta cultura acreditaria ter no Brasil um verdadeiro caldeirão cultural, páreo para uma Inglaterra renascentista ou uma Rússia do século XIX. Mas a verdade é que por trás de tanto barulho pouco de efetivamente relevante se salva. E, se assim o é, isto se pode creditar em grande medida à falta de ambição do artista brasileiro: o que em princípio é mera ignorância da tradição torna-se logo em programa de trabalho, e imediatamente se têm manifestos exaltando a espontaneidade, a instantaneidade e a falta de seriedade do que deviam ser obras de arte. Ou seja, o artista brasileiro contemporâneo não almeja um diálogo com os cânones, ao menos não enquanto continuador consciente deles, enquanto autor do que a contemporaneidade legará de canônico ao futuro. Se se disser a um jovem poeta brasileiro que ele escreve pior do que Camões, ele fará uma cara de espanto e dirá “Mas é claro! É Camões!”, ou talvez nem se precise ir tão longe: peça-se ao jovem poeta para competir com um Manuel Bandeira, com um Carlos Drummond, e ele retribuirá com um olhar quase ofendido – ofendido em nome de seus intocáveis predecessores, sobre os quais é sacrílego supor que possam ter nos dias de hoje quem os desafie. E, no entanto, há outro modo de se produzir alta cultura?
Façamos, em tempo, a distinção fundamental entre cultura e alta cultura. Evidentemente, esta está contida naquela. Venho tratando por alta cultura tudo aquilo que, dentro do bojo comum das manifestações da personalidade de um povo – a cultura –, destaca-se pelo refinamento de sua composição e por não ser apenasreflexo do momento cultural, mas que traga em sua estrutura algo de autoconsciência e autocrítica. É essa característica autoconsciente que permite a alguns artistas transcenderem seu momento sociocultural, sendo capazes, entre outras coisas, de parodiá-lo, mesmo estando inseridos nele. Tal capacidade de distanciamento só é possível quando já se empreendeu um verdadeiro estudo do objeto o qual se deseja retratar; do contrário, no caso desse objeto corresponder à realidade circundante, o máximo que se consegue é determinar-se por ele.
O que ocorre no Brasil de nossos dias é justamente a redução da arte ao espontâneo impensado, ou, em outras palavras: há uma contaminação da alta cultura pela cultura, não sendo demasiado identificar mesmo uma total substituição daquela por esta. Um exemplo notório disso é serem tomadas por poesia as letras de canções populares que, como insistia fervorosamente Bruno Tolentino, podem ter muito de poético, mas estão um tanto aquém do poema propriamente dito.  Acontece que a poesia hoje foi reduzida ao status de texto de teor confessional, onde se dá arbitrariamente uma disposição vertical a linhas de prosa quebradas, texto esse que, musicado ou não, não apresenta qualquer particularidade em relação à letra de música. Já a musicalidade própria da poesia, obtida nos metros ritmados e de jogos de rima, é considerada um belo arcaísmo, coisa difícil demais de se fazer, pois demanda estudo, treino e, evidentemente, tempo – o que vai contra as regras da espontaneidade desleixada do poeta contemporâneo.
A literatura é, por excelência, o veículo onde se cristalizam as características de uma sociedade num dado momento. Em seus melhores exemplares, ela não é um mero espelho, mas, como dito anteriormente, apresenta uma visão crítica da realidade que nela se reproduz, o que implica dizer que a boa literatura ajuda acompor a realidade, modificando-a. Daí seu papel crucial para o desenvolvimento das sociedades, pois sintetiza e avalia seus valores e dá ao povo um auto-retrato que nunca deixa de influenciar a psique coletiva.
Cabe-nos então olhar para a arte brasileira contemporânea, dando especial atenção à literatura e perguntando a partir dela: quem somos nós? Porém, eis o dilema: no Brasil deste início de século XXI não há uma literatura que nos represente, que dê conta de nos mostrar enquanto totalidade de um povo, expondo nossas contradições e assinalando nossos pontos fortes, de modo que nela o brasileiro tenha a condensação de sua essência.
Nossa prosa recente, que sai dos blogs para os livros impressos sem perdas ou ganhos, é presa de um subjetivismo inócuo, focalizando protagonistas sem raízes, de todo indiferentes ao fato de pertencerem a circunstâncias maiores que seus umbigos. Quando olhamos para a grande literatura universal – digamos, os gênios russos do século XIX –, vemos, pelo contrário, um esforço incansável da parte dos autores para situar suas personagens no momento histórico, sem com isso comprometer a análise psicológica e a descrição de ambientes imediatos. Mas o jovem ficcionista brasileiro parece recusar-se a tal esforço intelectual e imaginativo; prefere seguir o jorro de uma escrita automática, disfarçada de pós-modernismo combativo, sendo que, até este momento, tudo que tem logrado combater é aquela dama agonizante chamada Literatura Brasileira, que há pelo menos duas gerações não dá o ar da graça pelas bandas daqui.[1]
E, no entanto, raras vezes se viu ausência tão eloquente, capaz, ironicamente, de dizer mais sobre o que somos hoje do que a ficção que tantos escrevem sem obter resultados. Somos, pois, isso: uma sociedade sem autoconsciência, sem superego e totalmente entregue à preguiça dos automatismos do momento.

Nota:

[1] Não há quaisquer exceções? Há, sim; pouquíssimas e notadamente frutos de esforços isolados, que conseguem despontar à revelia do meio cultural geral. Mas, para os fins deste texto, é melhor não alentar o leitor com as exceções: ganhamos mais mantendo o cenho fechado e as esperanças em suspenso, pois em estado de alerta trabalha-se mais e melhor.

Lorena Miranda, graduada em Letras, é mestranda do Departamento de Literatura e Cultura Russa da USP.

Publicado no site da revista Vila Nova.