segunda-feira, 14 de maio de 2018

O DOUTORZINHO


    Entre os figurões da cidade, poderíamos dizer que lá estavam todos. Os de praxe, o tédio inarticulado dos chavões. Doutor Flávio, delegado Lisboa, doutor Auceu, e os demais “insetos em volta da lâmpada” que geralmente os acompanham.
    Era churrasco para comemorar a formação do filho do anfitrião da casa, Pedro Ivo, que agora tinha o rebento formado, adivinha em quê? Medicina é claro. No país do futebol, não se comemora a formação de alguém que ensine os outros a ler ou a escrever. No país do futebol a formatura que interessa é aquela que conserta-se canelas, dê pontos, remende cabeças, e, não podemos deixar de dizer, também salva vidas.
    Davi, o recém-formado, agora chamado de “doutorzinho” era o típico doutor interiorano. Esforçado, hájil, gentil e semi-analfabeto. Nos primeiros ganhos de sua clínica o primeiro in vestimento foi o de sempre. Carro grande, um gasto considerável em um som automotivo, festas populares regadas a whisky, onde, obviamente ele financiava tudo, uma vez que dinheiro não era problema.
    A mãe, que incialmente era só orgulho, começara a perceber a nova rotina que adquirira o filho depois que retornara a cidade. Era um misto de orgulho e angústia. Perguntava ela ao marido:
    -    Pedro, será que não está demais essas farras desse menino? Precisa dessa gastança de dinheiro?
    O pai muito acertivo, com o rádio ao ouvido refutava:
    - O menino pessou a vida inteira com a cara enfiada nos livros, trabalha feito um condenado e você não quer deixar o coitado se divertir? Que mal tem meu Deus? Que mal tem?
    Inadivertidamente o “doutorzinho” seguia sua rotina diária. Sua fama na cidade pequena se espalhara. Competente, gentil, compromissado. Percorria as sertania e atendia, inicialmente, a todos de bom grado. As mais idosas, deslumbradas com o jaleco branco e os olhos verdes eram mais devotas: - Parece até nosso Senhor Jesus Cristo!
    O “doutorzinho” agora santificado, tinha suas rédeas mais soltas na sociedade. Opinava sobre economia, futebol, literatura. As verdades fugiam-lhe da boca qual pássaros em fuga de um viveiro:
    - Saramago é o maior! Não tem escritor no mundo maior que Saramago.

    Para o bem da verdade é que gemia mudo em sua estante um esquálido exemplar de “Ensaio sobre a cegueira” que nunca passou das orelhas. Porém, a seguurança encantava. Entre uma dose e outra, desciam as carnes e peixes de primeira, que, acompanhado da platéia segura, os “insetos em volta da lâmpada”, jamais questionariam. As opiniões eram emitidas sobre todos os assuntos. Se o apelido carinhoso de “doutorzinho” já não o tivesse se espalhado, poderíamos dizê-lo como “rosa dos ventos”. Seu saber embora médico, servilha-se para tudo sob o sol.
    Entre um xarope e outro receitado, entre uma gripe e outra diagnosticada, entrara uma nova paciente. Olhos verdes, tamanho diminuto, cabelos tingidos de sabe-se lá que cor. Adentrou no consultório feito uma aparição cristã. Em êxta-se o nosso quase cristo de aldeia a atendeu com voz trêmula, mas discreto.
    - O que posso ajudar?
    - Oi doutor, não consigo respirar direito. Dói-me a garganta e o peito quando respiro.
    Retirou-lhe a camise, enconstou o estetoscópio gélido em seu seio e aferiu—lhe a pressão. Procedimentos básicos de um bom profissional com exceção do olhar demorado sobre os seios rosados.
    Curiosamente a jovem que consultada de forma tão atenta, que atendia pelo nome de Clarisse, rapidamente piorava, as consultas eram por assim dizer, quase diárias. As troca de olhares eram mais densas. O que as bocas falavam sobre as necessidades diárias da jovem malsã, não condiziam com os desejos ardentes escorridos dos olhos dos dois jovens pecadores.
    Tão logo não tardou o casamento. Os mais etusiasmados, ainda na festa já cobravam:
    - Quero um neto viu rapaz? E é para logo!
    Cobrava discretamente o pai da noiva, que, para o bem da verdade, um neto era a ssinatura de uma garantia social para sua filha para o resto da vida. Os pais do noivo por sua vez discordavam entre si sobre o casamento tão rápido. O pai queiva-se que o filho aproveitara pouco a vida de solteiro. Poderia ter, em seu palavriado calculado, “ter ganho mais experiência antes de casar”. Nisso resumia-se epenas a mais tempo de bebida e sexo sem compromisso. A mãe ao contrário, vira na nora a possibilidade inadiável de dar uma vida mais regrada ao filho, e incuti-lhe responsabilidades que ele sequer imaginava.
    Consumado o casamento a vida ia bem. Era um casal que a cidade admirava e envejava. Ele, um médico renomado, simpático, admirado por todas as castas sociais,. Ela, uma jovem belíssima, de competência questionável – antes de se casar com um médico, é claro -, mas que após investir na maior loja de roupas da região converteu-se do dia para noir em “personal estylist”. Profissão muito rara nos dias de hoje.
    A vida social não era menos frenética. Casamentos, batizados, aniversários. A vida era uma festa que se dividiam entre um ponto e outro dado, entre uma receitazinha azul e outra cedida as senhoras que pouco dormim. Entre uma festa e outra, não raro, era convidado a discursar em aniversários. A da vez era Amanda, uma jovem de quinze anos, onde tiverra o privilégio de ouvir tão nobres palavras:
    - Jovem de tal pedegri, filha de tão nobre família, já vejo em seus olhos não outro talento senão a devoção que este humilde servo de Deus, que fala essas palavras também dedicara a sua vida. A medicina! Percebendo ou não, ao exaltar sua própria profissão acabava quase sempre em diagnosticar as demais profissões como um câncer social. A sociedade em sua visão era dividida tao somente em duas espécies: Os médicos, e os frustrasdos que não conseguiram sê-lo.
    Percebendo a voz já trôpega do marido Clarisse modereva-o:
    - Amor já está bom.
    Tentava não fazê-lo parar de beber, pois isso já era impossível, mas apenas diminuir suas doses. Por vezes, sem que o mesmo percebesse, adicionava cargas de gelo, na esperança de enfraquecer o destilado. Nesta mesma noite, voltavam para casa em sua 4x 4, com mais trẽs amigos no banco de trás. Dois médicos e o delegado de plantão. O carro aumentava de velocidade e os olharees se cruzavam de medo dentro do veículo.
    - Não é melhor diminuir doutor?
    Ele, formado em medicina, especialista em estradas carroçais receitava:
    - Sei o que estou fazendo “homi”. É o doutor quem está aqui. Confie!

    Cinco minutos depois o carro capotara, nada de grave aconteceu, apenas Clarisse que sentia uma dor na perna. Todos saíram no carro e apressadamente a viram ensanguentada em seus membros inferiores. Um caco enorme de vidro dilacerara sua veia femulral. O sangue corria frouxo, largo, vibrante feito um mar. Ele tentou agir. As mãos trêmulas e mal trinadas não foram frimes o bastante. Os únicos gestos que estavam de fato habilitadas a fazer era o segurar de copos, os acenos, os apertos de mãos. A morte foi certa. Sentado ao lado do corpo, via-se o “doutorzinho” refletido no caco de vidro entre manchas.
    A lua jazia morna no céu. A dor era sua única espectadora. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Ainda que...

mar luz nuvem céu mulher Por do sol fotografia luz solar manhã onda vento modelo segurando cachecol caucasiano fotografia beleza véu sessão de fotos

Ainda que sopro do verbo
Tua palavra burilada em versos
Que gotejam das calhas
Dos cantos dos olhos
Que me fitam em silêncio
Amordaçados em segredos
Que berram dentro de ti

Ainda após os anos
És a mesma dentro da noite
Dos gozos não tidos comigo
Dos beijos negados no tempo
Que desgastam castelos nos prados
Mas que é impotente dentro de ti

Ainda que meus versos se recusem
Teu nome lateja na rima
Como uma esgrima, uma dança, uma valsa
Que sangra poemas em silêncio
mas ainda é tempo de ser feliz.

Antonio Sávio