domingo, 29 de novembro de 2009

Feliz no Carnaval

Ainda na busca dos altares
Erguidos aos prazeres das noites
Pelos Pierrôs dopados pela pira
Das paixões derrotadas, debruçadas
Sob a luz da lua, sob a valsa dos confetes.
Neste carnaval que é o fermento de trevas,
De paixões mal resolvidas,
De bridas perdidas sem freios,
Dança o mestre- sala, fazendo sala à poesia,
Mas, as lágrimas quedam pelo rosto,
Pisam a face cansada de peito esfolado
De dores que a quarta de cinzas
Num céu de chumbo põe-se a chorar.
Sob as máscaras dopadas, além da música feliz
Abaixo da maquiagem, as lágrimas brotam...
Mancham este rosto fadado, a ser feliz somente na fuga
Da festa fulgás, onde os sambas-canções cantam teus ais...
És aqui que és feliz, nestes raros momentos,
Onde os tormentos teus são dopados pela festa fulgás.

Foto: Daniela Caniçali

sábado, 28 de novembro de 2009

Vaga Palavra

Risco da palavra, risco, corte, faca
Palavra que devora.
Cala a palavra, palavra que sufoca (enforca)
Fala a palavra, fala tanto
Que me afoga.
Afoga a palavra mar?

Segue calada, no verbo que se corta
Segue sangrando esse sujeito que é verbo
Quem tem corta?
Conta palavra!
Corta essas contas e
Banha tua sangria no mar

Palavra vaga,
No mar tem mil e uma vagas,
Vaga palavra, outro contexto
Vaga de que não explica nada

Vão pensamento teu,
Vaga explicava uma vaga enorme
Foi o meu dissertar.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Surpresas Dolentes

Não, não foste embora nas horas mortas
Do fim de tarde
Não foste, não feriste teus passos
Nessa longa e triste estrada
Deixando-me as cinzas do tempo,
Deixando-me no ar tuas lembranças,
Teus olhares, tua presença nos livros
Nos discos, nas réstias de sol,
Nos restos de mim.
Pois não creio no que some de repente,
Não creio no que escorre entre meus dedos
No que some de minhas retinas,
No que escapa fulgás pelo ar...
Sumiste cortando o ar deste sertão
Sumiste cortando meu peito,
Colorindo o chão com o rubro do meu sangue
A chorar...

Foto: Hugo
Fonte: http://br.olhares.com/solidao_foto944574.html

domingo, 22 de novembro de 2009

Versos Decantados

Eu que nada sei da vida
Nada entendo desse caos ao meu redor
Só percebo os versos que pairam aqui perto
E que os colho, entrego-os pela ponta da pena
Assim como quem colhe uma fruta
E oferta ao faminto.
Oferto meus versos, como tegumento
Retirados das câmaras do meu coração.
Estão aí meus versos todos encantados,
O supra-sumo do meu ser
Em formas de versos decantados,
Destilados e suprimidos sob a forma deste pão.

Pintura: English: The musical contest. Oil on canvas. 62 × 74 cm. Wallace Collection, London.
Jean Honoré Fragonarg (1732(1732)–1806(1806)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O caminho possível

Caminho, na valsa calma
No passo eterno dos doentes
Ombro a ombro com os dementes
Beijo a beijo com as mulheres
Perdidas na noite sem dentes,
Sem sonhos, sem sóis, numa eterna madrugada
Caminho ao lado do cego, do surdo, do mudo
Estudo, a voz latejante do tagarela.
Caminho nessa marcha de malsãos
Nessa madrugada eterna de quimeras reinantes
Nessa névoa de fuligens que fustigam
Meus medos, meus calos nos pés
Meus sonhos outrora tão sóbrios,
Agora delirantes
Caminho, embora o açoite,
Embora seja alvo, embora seja teste
Caminho com o cuidado de levar as mãos
Feito conchas levando os sonhos impossíveis
Embora só seja possível este corpo magro
Cheio de pestes.

Foto: Filomena

sábado, 14 de novembro de 2009

No repouso das horas noturnas.

No repouso das horas noturnas
No gemer do tempo silente
Estão as páginas amarelas de sempre
Desafiando-o sob a luz das tochas rubras

Estão as linhas pousadas nas pautas
Esperando a vigília de teu olhar insistente
Está a batalha do cansaço da vida diária
E a outra batalha noturna com os livros silentes

Está a mente do intelecto vazia
Preenchida gradativamente
Como o grão da ampulheta que cai

Formando o monte insistentemente
Está o tempo como desafio
Está você em luta consigo, permanentemente.

Imagem:Rembrandt. Parable of the Rich Man. 1627. Oil on panel. Gemäldegalerie, Berlin, Germany.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Uma lágrima.

Uma lágrima de sal
Para as mortes distantes
Para as mortes de entes
Como eu e você, como agora e antes
Chora a parafina na vela, no castiçal
Chora a luz bruxelante, nesse silêncio de umbral
Uma lágrima para os mortos de Unganda,
Uma lágrima para o afegão.
Uma lágrima na tua consciência
É desde já uma revolução.
Uma oração pelos cambojanos,
Uma reza pelos cubanos fuzilados no paredão,
Onde hoje o sol brinca com as cores de sangue
Espichadas, que escorreram pelo chão.
Uma lágrima de sal, pela fome no Butão
Uma oração antes do café da manhã
Antes de qualquer comemoração.
Uma lágrima de sal, para adoçar o teu mar
Para descortinar essas trevas,
Para fazer de conta que você se importa.

Foto: Nuno Ferreira

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A criação

Ia passando displicente, ao fim de tarde
Ia passando desatento pela madrugada
Olhos nos olhos o fitar.
Tem dias que surge meigo, e nos vem fácil
Fraterno.
Noutros corre, persigo-o.
Dobra em esquinas, ligeiro,
Corre entre ruelas, veredas, passos largos...
Derrapo, suspiro suando, mas por fim o detenho.
Pego cá o poema entre meus dedos,
Ele uivando, rebelando-se.
Amanhã o terei ameno, como as sombras
No fim de tarde.
Imagem: "A crição do Homem", detalhe da Capela Sistina.
Michelangelo ("Miguel Ângelo") di Ludovico Buonarroti Simoni (Caprese, 6 de Março de 1475Roma, 18 de Fevereiro de 1564).

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O POETA JOÃO CABRAL DE MELO NETO DÁ DE PRESENTE UM EPITÁFIO EM VERSOS PARA O AMIGO LEDO IVO - E MORRE. LEDO IVO CHEGA AOS 85, CHEIO DE “PERPLEXIDADE”

Postado por Geneton Moraes Neto em 03 de novembro de 2009 às 22:08
GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?

Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em seus poemas”.

Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse um encantamento da linguagem - uma magia. Sou um poeta que acha que a poesia é o uso supremo da linguagem. Bandeira fez esta descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por exemplo, a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de cultura. Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura é que permite ao poeta exprimir-se.

A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor. Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição do escritor e do poeta no Brasil.

Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o último grande exemplo. O poeta vive hoje em uma época de anonimato. Os ícones são diferentes, os gurus são outros. A linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia tem condições de dizer. A poesia, então, existirá sempre,como linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.

GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?


Ledo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A notoriedade é secundária”.

GMN : O senhor tem esta sensação de deslocamento ?

Ledo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no momento certo.Tenho um grande sentimento da minha contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.

GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual foi a grande lição ?

Ledo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os poetas.Cada poeta é diferente. As estéticas dos poetas são até inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim, João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se abre para o grande acesso popular, o que é curioso.

Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora, anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós sonhamos”.

GMN : Para o senhor - que se considera “um homem de muitas perguntas e quase nenhuma resposta” - qual é a grande pergunta, a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?

Ledo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo - com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não-existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas.Talvez o meu mundo seja o mundo da ambigüidade.

Drummond chamou a minha poesia de “múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura.

Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.

GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude. Qual foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?

Ledo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo. Outro irmão meu, chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família nordestina,numerosa, a morte vive sempre rodeando as pessoas. Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas censuro a morte ! .Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não esteja aqui”.

Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem tarde e outros não morrem nunca ? “.

GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João Batista. O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?

Ledo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo. Não fui para visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos. Terminou não fazendo.

João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro. Nunca nos encontramos - nem esteticamente. Dizia que eu falava muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :

“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.

PS: A vida tem dessas ironias : lastimavelmente, João Cabral de Melo Neto, autor do epitáfio de Ledo Ivo, morreu há dez anos. Tinha 79 anos de idade. O poeta presenteado com o epitáfio precoce felizmente continua vivo. Ledo Ivo tem oitenta e cinco anos.
Fonte: G1