segunda-feira, 31 de maio de 2010

Bruno Tolentino e a lição de Ezra Pound

Fonte: Portal Literal 1.0, Rio de Janeiro (RJ) · 14/8/2008 · 16 votos · nenhum

Publicado originalmente em 24/08/07 por Pedro Sette Câmara.

Bruno Tolentino sempre repetia uma frase famosa de Pound: "Devemos escrever poesia pelo menos tão bem quanto prosa", o que significa que a poesia deve ser pelo menos tão clara e cristalina quanto a melhor prosa, e, se for digna do nome, conseguir ser ainda mais impactante.

Mas outra frase famosa de Pound era o imperativo "fazer o novo", tradução um tanto bizarra para make it new, que em bom português daria algo como "tornar algo novo" ou até, com alguma aparente perda de ênfase, "renovar algo". Digo "aparente" porque faço uma leitura muito pessoal de Pound, com a qual creio que Bruno Tolentino concordaria: é irresistível lembrar que Cristo é o Logos divino, o Verbo, a Palavra anterior a toda palavra, e que Ele mesmo disse: "Eis que faço novas todas as coisas." O próprio Pound também dizia que literatura era news that stays news, e um tradutor cristão, sofrendo pela feliz ambigüidade entre "a novidade que continua a ser novidade" e "a notícia que permanece notícia", não tem como não se lembrar da permanente boa-nova, nada menos que o Evangelho. Não creio que Pound fosse gostar de ser batizado assim, mas nada nos impede de aproveitar desta maneira o que ensinou.

Voltando ao estranho "fazer o novo", este entendimento peculiar do crítico Pound, talvez corroborado pelos muitos estranhos versos que o poeta Pound deixou, agravou um dos grandes vícios brasileiros, que é o anseio desmedido por novidades, a disposição de trocar a primogenitura pelo primeiro camembert que apareça na alfândega, desde que seja o camembert da moda em Paris. O desejo específico de "fazer o novo" veio, como Tolentino argutamente observou em Os sapos de ontem, abortar uma tradição brasileira que se estabelecia e que já não devia nada aos chamados "grandes centros".



Esta tradição brasileira, ou tradição de língua portuguesa falada no Brasil, tinha como característica a proximidade da linguagem comum. Árcades e românticos buscavam comunicar-se com os leitores. Ao fim do século XIX, surgem os primeiros grandes poetas "à parte", como Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa, mas este se distancia pela busca do sublime e pela ênfase sonora, e aquele pelo desejo de usar, ou abusar, de termos científicos e esotéricos, tudo em musicalidade baudelariana: o verdadeiro Frankenstein nacional. Ainda assim, um monstro com cara de homem, um grande poeta. É apenas quando os concretistas começam a produzir obras ininteligíveis, animados pelo desejo de "fazer o novo", e não de renovar a linguagem efetivamente usada pelas pessoas, que o adjetivo na expressão "literatura moderna" ganha mais peso que o substantivo.

Rimbaud já tinha dito que era preciso ser "absolutamente moderno", mas preferiu parar de escrever a ficar por aí dando a entender que quando falamos em "literatura moderna" a parte importante é o "moderna", até porque a modernidade é sempre inevitável, mas a literatura não. O próprio Pound, recordemos, haveria de admitir o ilogismo do distanciamento absoluto da linguagem cotidiana, afinal, como ele também disse, poesia é "linguagem carregada de significado", tão carregada que faz com que uma novidade consiga permanecer nova através dos séculos, mesmo sendo velha. É por isso que até hoje repetimos que "amor é fogo que arde sem se ver" e que "transforma-se o amor na cousa amada".



Por isso, quando Pound falava em renovar, make it new, demonstrava apenas estar ciente de que as formas de expressão tendem a cristalizar-se e desgastar-se, que mesmo um gigante como Camões precisa de novas leituras e novos contrapontos para que a literatura não entre em piloto automático. Fundamental mesmo era, e continua sendo, fazer a verdadeira revolução, que consiste em voltar às coisas mesmas para, ouvindo-as, dar-lhes voz.



Esta é a questão crucial: voltar às coisas mesmas, contemplar algo, colocar a linguagem a serviço da comunicação de algo, não deixar que ela fique apenas voltada para si mesma, como uma alma sem corpo a vagar em projeção astral, uma modernidade sem literatura, uma literatura sem palavras, um monte de palavras sem sentido. Isto só é possível se o próprio poeta tem uma preocupação vital, ou até mais de uma. Bruno Tolentino teve algumas, mas a mais importante, a que mais contribuiu para informar sua obra, diz respeito a um aspecto sutil da vida interior do homem: tendemos a preferir o retrato ao retratado, a beleza artificial e pretensamente eterna à beleza inevitavelmente agonizante de tudo que vive, a preferir, enfim, o mundo como idéia ao mundo como mundo mesmo. Isto se reflete tanto na luxúria por mulheres de Photoshop que impede o amor por mulheres reais, não menos maravilhosas por terem defeitos inevitáveis, quanto, para citar T. S. Eliot, no desejo por sistemas políticos perfeitos que nos dispensem de ser bons, que nos desobriguem da compaixão e da misericórdia, e assim nos fechem para o outro – não o "outro" abstrato, mas o outro que está à nossa frente e a quem podemos fazer um bem tangível.



Explicitado assim, o tema pode não nos comover tanto; mas cabe ao poeta utilizar os recursos que nos inspirarão a fugir do mundo como idéia e buscar o mundo real, ou a experiência que Bruno descreveu como "mundo como rapto", o arrebatamento momentâneo que constitui o verdadeiro ato intuitivo, de conhecimento imediato. É neste momento que ele se volta para seus mestres, em busca de meios de expressão; mas antes passa pela fonte da linguagem cotidiana, a fonte que sai da própria terra. O resultado normalmente segue a tradição da poesia de língua portuguesa: o discurso poético anda um degrau acima da linguagem cotidiana, que passa a ser transfigurada pelo ritmo e pela proximidade com termos que têm significados muito especiais. Vejamos por exemplo o soneto final da série "O pote no balcão", em O mundo como Idéia [vencedor do Prêmio Jabuti 2003], em que o poeta discute com o próprio coração, num tom brasileiríssimo de intimidade e humor, a necessidade de ele parar de se contentar com "noções apenas" e partir para o famoso mundo real:

VII

Venho abrir-te de vez essa gaiola

em que eu mesmo te fiz viver suspenso;

ando perplexo entre o que sinto e penso,

entre a mão estendida e a falsa esmola.

Admiro-te ainda a cabriola,

a audácia, a acrobacia sobre o imenso,

mas sinto-te quicar como uma bola

num joguinho fictício e ando propenso

a pegar-te na mão e sem demora

te atirar, coração, no olho da rua,

o olho vivo da vida! Muito embora

a ninfa que inventaste ande mais nua,

mais bela assim, vestida só de lua,

basta de orgulhos, coração, cai fora!

O discurso é direto, sem inversões sintáticas. A principal marca de uma "dicção literária" é o uso da segunda pessoa, seguida do uso de "imenso" substantivado. Nada de mais. Mas a novidade volta a ser novidade quando vemos uma expressão banal como "o olho da rua" sofrer um acréscimo de sentido: além de ser a situação provisória que é o contrário da proteção do lar, neste caso o lar imaginário em que vive o coração, é também "o olho vivo da vida", o conjunto dos acontecimentos concretos. A ninfa inventada, "vestida só de lua" – uma alfinetada em Vinícius de Moraes – pode ser mais bela; mas é irreal, não passa de um orgulho – eis a segunda subversão, desta vez de um lugar-comum da poesia. A opção pela próclise em "te atirar", contrariando as supostas regras, as mesmas que levaram Oswald de Andrade a escrever aquele poema1 sem graça lido em todas as escolas, mostra o quanto o bom senso pode servir à sonoridade e à métrica, o mesmo bom senso que levou à ênclise de "admiro-te ainda a cabriola" e "sinto-te quicar". O uso de um tom brincalhão, mas não irreverente, lembrando que irreverente é quem não presta as reverências devidas, também contrasta com a galhofa dos modernistas de 22 e os "marginais" dos anos 1970-80, cujo maior legado foi convencer muita gente de que mostrar a língua e fazer pose são formas de alta cultura. Tudo isto procede do tema: o pito que Bruno Tolentino quer passar no próprio coração que só ama o que é imaginário. O texto, por sua vez, vai estabelecendo todos esses diálogos, entranhando-se numa tradição, baseando-se na língua que já está presente no vivíssimo olho da rua.



Isto sim é renovar o idioma, make it new, e torna-se impossível não querer dizer "coração, cai fora!" diante de cada nova paixão intelectual maligna. A expressão trará a lembrança do poema; a lembrança se transformará em memória; a memória em imaginação; e assim a poesia informará a nossa maneira de enxergar o mundo, moldará a forma com que recebemos nossas experiências, nos dará novas categorias e, além disso tudo, nos inspirará a fazer o coração cair fora quando necessário. Francamente, não se pode esperar muito mais do que isso de um poeta – como já pode ter percebido quem notou que os conselhos de Ezra Pound valem para qualquer um, em qualquer época, e não só para aqueles que estavam no século XX, doentes de cronocentrismo.

(1) Pronominais

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarroJustificar

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O fim dos dias.

No fim das guerras, quando choram os mortos
Por suas vidas perdidas, e choram os vivos
Pelos tantos mortos achados...
Quando o cheiro pestilento coroa o ar,
Ou as lágrimas correm, na face de quem
Olha o reflexo do próprio rosto
Nos vidros das janelas que estanca o ar,
Há dor...
Há dores indizíveis para quem sangra
Vendo seu sangue se esvair,
Ou vendo a esperança voando,
Correndo entre os dedos,
Deixando-a escapar...
As lágrimas em si não doem,
Mas sentir os passos molhados de sangue
E a esperança em vôo no horizonte
(fugindo pra longe)
Não tem como falar.

Foto: Pedro Mônica

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O declínio da cultura ocidental

Algumas notas sobre o livro "O declínio da cultura ocidental" do Allan Bloom.

(...)
Quando reparei pela primeira vez no declínio da leitura, no final da década de 60, passei a perguntar às minhas enormes turmas dos anos preliminares, e a grupos de alunos mais novos, que livros realmente contavam para eles. A maioria ficava em silêncio, embaraçada com a pergunta. Para eles, era estranha a noção de livros como companheiros.
(...)

Se os estudantes não possuem livros, em compensação adoram a música. Semelhante apego é o que há de mais notável nesta geração. Estamos na era da música e dos estados de espírito que a acompanham.
(...)
[A] música dos devotos de hoje, porém, não conhece classes nem nações. Está disponível 24 horas por dia, em toda parte. Possuímos estéreo em casa e no carro; temos concertos, vídeos musicais e assim por diante, não esquecendo os walkmen. Em resumo, não há um só lugar – nem os transportes públicos ou as bibliotecas – em que os estudantes não possam comunicar-se com a Musa, até mesmo nos momentos de estudo. Acima de tudo, aliás, o solo musical ganhou tropical riqueza. Nada de esperar por gênios imprevisíveis. Agora os gênios abundam, produzindo sem parar; cada herói que tomba, dois logo se erguem para assumir o lugar. O que menos escasseia é o novo e o inesperado.
(...)
Pense num garoto de 13 anos sentado na sala de estar de sua residência estudando matemática com os fones de ouvido do walkman ligado ou então assistindo à televisão. Está usufruindo as liberdades duramente conquistadas ao longo de séculos pela aliança do gênio filosófico e do heroísmo político, consagrada pelo sangue dos mártires. Goza de conforto e de ócio, graças à economia com a maior produtividade que a história já conheceu; a ciência penetrou nos segredos da natureza para lhe proporcionar som eletrônico e reprodução de imagem que imita a vida. E, afinal, em que culminou o progresso? Uma criança púbere cujo corpo vibra com ritmos orgásmicos, cujos sentimentos se articulam em hinos às alegrias do organismo ou à morte dos pais, cuja ambição é ficar famoso e rico imitando a rainha das marafonas, que faz a música. Resumindo, a vida, se transformou numa interminável fantasia masturbatória pré-empacotada.
(...)

Fonte:
Bloom, A. 1989. O declínio da cultura ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade. SP, Best Seller.

Sobre o mesmo tema, caso alguém tenha interesse recomendo "A origem dos grandes êrros filosóficos" do Mário Ferreira dos Santos, "O eclipse da razão" do Max Horkheimer, "A Cinza do Purgatório" do Otto Maria Carpeaux. Por aí dá para começar a quebrar a cabeça e perceber que pelo menos filosoficamente a nossa situação atual não é tão boa.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Lábio moreno, alma de cristais.

A boca de lábio moreno
Qual veneno, sara, cura
O malsão que foi beijado.

Os Olhos negros que fogem dos meus
São olhos de fé, qual passos de valsa
Que dançam sobre a terra,
Sobre a ilusão do ateu
Que depois de ti, qual sopro de vida
Renasce e crê.

A boca, de lábio moreno
De alma cravejada de cristais
Reluzem sobre o corpo
O corpo enverga-se sob a força da alma
Qual as árvores balançam
Sob o sabor dos vendavais.

Tua boca, teu lábio moreno
És veneno minuano,
És o bálsamo em forma de vendavais.

Foto: Olho de Orí
Fonte: Olhares.com

sábado, 15 de maio de 2010

Luzia, Luzia mulher.


Gosto de ti, Luzia mulher

Rosto de fera, sangue no olhar

Olho que é vida

Vida de força para quem quer

Luzia olhos de fera felina

Luzia que intimida quem ela quer

Olhos de fera, lábios cicuta

Luzia mundana, uma questão de fé

Luzia que é fera, é gata, bichana

Luzia em pedaços de paixões de mulher

Luzia que chora, que lamenta, que ama

Luzia são flocos de neve

No coração de quem ela quer

Ode a mulher fatal, a ex-Luzia pesticida

Ao olhar que persegue, que mendiga

Quando ela passa sem um olhar sequer

Luzia que aprende com as lágrimas do dia

Luzia que sabe que não é nada mais que uma mulher.


Foto: Pedro Silva

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sangria de Mares e Prados

O escaler solta-se do navio
E rumo ao infinito navega sem temor
Qual o homem que se atira as paixões
Sangria de florais nos prados,
Hastes quebradas pelos vendavais

O escaler, remando contra o vento
Só tem o sol como horizonte
E como tal, é sua única possibilidade.
Seguir ou temê-lo?
Assim se dão as paixões.
Segui-las sem temê-las rumo ao incerto,
Ao naufrágio, ao infinito...
Ou a costa que nos espera,
Com o ocre da areia dourada pelas águas.
A paixão é teogonia, é utopia...
Mas por vezes é repouso, mas quem nem
Ao menos a tinha como esperança.

Paixão sangria nos prados pelas roseiras,
Hastes quebradas ao meio pelos vendavais,
Mas as raízes ainda estão fincadas
E os acúleos vorazes rugem afiados
Para o horizonte.

Pintura: "A descoberta da América por Cristóvão Colombo" - 1958/59
Salvador Dalí