| 10 Julho 2012
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Cultura
A
capacidade do homem comum e vulgar, em geral, de discernir o futuro
mais próximo por intermédio da intuição de “probabilidades pesadas”, não
existe no gnóstico devido a uma fé metastática que o possui e controla.
Ao
estudar os textos em prosa publicados de Fernando Pessoa — porque eu
não os li, apenas: estudei-os, literalmente —, cheguei à conclusão de
que não concordo com a mundividência dele em mais de 50%, embora também
reconheça que ele foi mudando substancialmente de opinião à medida que
avançava na idade, e não posso deixar de lhe reconhecer muita
originalidade e mesmo genialidade na forma como construiu o seus
raciocínios, mesmo que, a espaços, ideologicamente opostos entre si.
E
mesmo com a formação do partido de Hitler na década de 1920, e com a
sua ascensão ao poder a partir do início da década de 1930, Fernando
Pessoa — que faleceu em 1935 — não conseguiu prever ou intuir o horror
da II Guerra Mundial que teve o seu início em 1939 [apenas quatro anos
após a sua morte]. E mais: Fernando Pessoa, que criticou duramente D.
Manuel I pela expulsão dos judeus, e sendo ele próprio descendente de
judeus, sempre foi um germanófilo de boa cepa, defendendo por exemplo a
posição dos alemães na I Guerra Mundial. O que diria Fernando Pessoa dos
seus ilustres alemães se pudesse ter assistido ao horror do holocausto
nazi?
O caso de Fernando Pessoa e a sua relação próxima com os alemães é sintomático da dificuldade de alguém, vivendo as circunstâncias do seu presente, poder prever sequer o futuro mais imediato. Karl Popper fala-nos nas “possibilidades pesadas” de acontecimentos futuros, comparando-as com a probabilidade quase certa de nos sair um determinado número em um jogo de dados viciado: se o peso de um dos lados dos dados estiver viciado com chumbo, a “probabilidade pesada” é a que o número viciado nos calhe sistematicamente em sorte.
O caso de Fernando Pessoa e a sua relação próxima com os alemães é sintomático da dificuldade de alguém, vivendo as circunstâncias do seu presente, poder prever sequer o futuro mais imediato. Karl Popper fala-nos nas “possibilidades pesadas” de acontecimentos futuros, comparando-as com a probabilidade quase certa de nos sair um determinado número em um jogo de dados viciado: se o peso de um dos lados dos dados estiver viciado com chumbo, a “probabilidade pesada” é a que o número viciado nos calhe sistematicamente em sorte.
Mas
Fernando Pessoa não conseguiu intuir qualquer “probabilidade pesada” em
relação à capacidade dos seus admiráveis alemães em exterminar os seus
queridos judeus: morreu convencido de que o partido nazi alemão seria
apenas uma insignificante corruptela germânica de Mussolini. E a razão
pela qual Fernando Pessoa não conseguiu intuir um futuro tão próximo do
seu presente, prende-se com a sua fé metastática gnóstica — a Gnose. Fernando Pessoa era um gnóstico.
Um
gnóstico não é alguém que não tenha um senso firme da realidade. Pelo
contrário, no caso de Pessoa, ele tinha um conhecimento imenso da
História, e fazia análises políticas do seu presente muito bem
fundamentadas e com um raro sentido crítico. O problema de Fernando
Pessoa não era o passado e o presente, que ele conhecia muito bem: o
problema dele era o futuro e a sua obsessão com o futuro.
E
é com o futuro que os gnósticos se enredam e se vêem com “os burros na
água”, porque perderam o sentido do senso-comum do homem vulgar. A
capacidade do homem comum e vulgar, em geral, de discernir o futuro mais
próximo por intermédio da intuição de “probabilidades pesadas”, não
existe no gnóstico devido a uma fé metastática que o possui e controla.
Com
o advento da revolução francesa e do Positivismo, entramos todos na Era
da Gnose, o tempo de predomino cultural e social dos novos gnósticos,
em que se misturou a Gnose da antiguidade tardia, com a nova Gnose
cientificista. É assim, por exemplo, que Fernando Pessoa consegue ser um
acérrimo defensor da ciência positivista e, simultaneamente, anunciar o
seu místico apoio à maçonaria, por um lado, e por outro lado defender a
veracidade absoluta das profecias do Bandarra e de Nostradamus — para
além de se dizer, ele próprio, membro da Ordem dos Templários que, como
sabemos, foi o esteio medieval da maçonaria operativa.
Portanto, a Gnose é no presente, como foi no passado, a confirmação absoluta do poder que Prometeu concedeu ao Homem.
No
plano da ciência moderna, a Gnose passa pela afirmação da validade do
cientismo. E na tipologia da religião moderna, a Gnose passa, por um
lado, pela preponderância quase absoluta da imanência [seja
nas religiões políticas, como por exemplo o marxismo, seja na imanência
da Cabala ou do ocultismo, teosófico ou outro], herdada da tradição
gnóstica antiga ou adotada pelos Templários; e, por outro lado, passa
pela validação de uma visão maniqueísta do mundo — maniqueísmo entendido
no sentido da religião de Mani, em que o Bem e o Mal são duas forças
equivalentes — que adoptou de Heraclito a complementaridade dos opostos.
Tudo isto se pode verificar, com uma cristalina clareza, nos textos em prosa de Fernando Pessoa.
A
partir do momento em que o gnóstico moderno — seja ele cientista ou um
místico imanente [o que em termos da Gnose vai dar no mesmo] — encara o
futuro a partir de uma perspectiva prometeica — segundo o conceito de
Protágoras do “homem como medida de todas as coisas”
— e imanente — na medida em que prepondera nele o determinismo absoluto
em relação à realidade, ou o absolutismo tirânico do Destino segundo
Fernando Pessoa —, a sua capacidade natural de intuir o futuro próximo
das “probabilidades pesadas” fica altamente comprometida. E esta é uma
das razões, por exemplo, por que a maçonaria [imanência] tem falhado
rotundamente em quase todas as “apostas de futuro” que fez no século XX.
O
século XX pode ser classificado como a Era em que as apostas dos
gnósticos modernos no futuro redundaram em hecatombes humanitárias
indizíveis. Tentando “forçar” o futuro em determinado sentido, os
eventos entraram em retroacção, e a imprevisibilidade que é
característica do futuro traiu os sonhos e as utopias traduzidos pela fé
metastática dos novos gnósticos, com consequências catastróficas para a
humanidade.
Corolário: o problema do nosso tempo, e da nossa crise, não é só de 2008:
o problema vem de trás, dos Idos do século XVII. E enquanto não
tivermos todos, embora obviamente uns mais do que outros, consciência do
problema complexo que nos trouxe a Nova Gnose, não iremos sair do
delírio interpretativo colectivo que obnubila o espírito do Homem
moderno.
Orlando Braga edita o blog Espectivas.
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