sábado, 26 de novembro de 2011

PRAZERES HEDIONDOS


                Pedro saiu cedo de casa e cedo chegou ao trabalho. Cigarro no bico digitou por horas na redação do jornal. Detestava chavões e por isso evitava beber café por ali embora gostasse. Era uma vaidade besta, uma tentativa de ser diferente entre os diferentes. De poucas amizades pouca falava e era conhecido como um idiota arrogante.
                Ao fim do dia passou na praça da luz. Fumava ali ao som da brisa do mar vendo os coqueiros vergar-se ao vento. Não sabia explicar por qual motivo os prazeres da vida eram tão rápidos. Logo daria à hora de voltar para casa ou pegaria um trânsito infernal pela avenida Anita Garibaldi.  Ao virar-se da praça para frente do boteco que estava viu Amanda, sua esposa passar de carro com um homem as gargalhadas. A angústia, o medo e a raiva apareceram-lhe pressionar os globos oculares. Não poderia ser verdade.
                Em poucos segundos viu todos os defeitos de sua esposa e toda uma retórica de Cícero emperrar em sua garganta comprometendo-lhe a respiração. Pagou e não esperou o troco. Em uma tragada a vermelhidão do fumo resumia o estado de seu cérebro. Narinas dilatadas entra no carro e arranca. Ainda sabia fazer as irresponsabilidades que há anos recusava-se, como homem responsável, a fazer.
                Passou dois faróis vermelhos e acompanhava o carro dela de vista. Quase atropelou um ciclista que, com o susto jogou-se para o lado de um posto de gasolina. Indiferente como um cego prosseguiu. Nesse instante já estava mais calmo, já tinha a situação sobre controle e a traição sofrida já lhe era quase um prazer. Sorria dentro do carro e olhava-se pelo retrovisor sorrindo e dizendo: - Putinha barata. Aliás, nem tão barata. O seu caso transa contigo de graça e eu quem te pago comida, roupa lavada e viagens. Enfatizava com ódio: Viagens!
                Na esquina, próximo a um retorno o carro para e estaciona em uma galera e descem os dois. Ela nunca parecera tão alegre. Os cabelos ao vento lembram uma propaganda de xampu.  Isso o indignava ainda mais. Entraram em uma perfumaria e Pedro em uma floricultura ao lado. De lá ouvia as gargalhadas e palavras entrecortadas:
                - Amor olha este.
                Pensava Pedro: - Ele está sentindo algum perfume que ela sugere.
                A morena baixa de seios pequenos da floricultura atalha:
                - Senhor, posso ajudar?
                -Sim sim! Hortências por favor!
                Hortências eram as preferidas de Amanda. Lembra quando aos vinte anos pintara um quadro dela com um ramo delas ao colo. Achava aquilo meio brega, mas cedera embriagado de amor. Pensava com ódio quantas vezes cedera por amor. Uma promoção na Europa recusada, viagens não feitas, diversões amputadas em troca de quê?

                Apanhou a compra medíocre e ainda conseguiu ouvir a última frase deles na botica:
                - Não posso chegar com um perfume desses em casa. Isso é caríssimo, meu... – Baixou a voz e sussurrou no ouvido do amante: - Ele ia notar. É caro demais. Teria que dar satisfações.
                Nesta frase ele gozou de um prazer estranho. Embora sofresse pela traição era mínimo tudo isso. Iria tripudiar de seus sentimentos de um modo que lhe chamariam de mostro. Correu para a botica e comprou o presente recusado pelo cálculo dela. Ainda seguiu-os e viu quando pararam em um restaurante.
                Sorriam em uma alegria que era uma afronta. Ela tinha os olhos reluzentes e ele, este estranho canalha de unhas bem feitas. Devia ter menos de trinta e cinco anos. Ela bebia um vinho branco e depois algo que ele não conseguia identificar de longe. Achou por bem ir para casa.
                Abriu a porta do guarda roupas e no maleiro colheu a câmera nova que nunca usara. Ligou-a escondida em uma tralha de livros e bonecas de pano em uma estante sobre a TV. Ás seis e meia ela chegara. Tinha uma mesa feita, lindíssima. As velas brilhavam nos castiçais e casa cheirava, no ar uma fronteira entre um incenso de acácias e as ervas finas do molho carne. Ela entra surpresa com olhos arregalados e um sorriso preso no canto da boca. A palavra amor arrasta-se no ar:
                - Amor? O que isso tudo?
                Ele quase feliz com o teatro armado fala cínico:
                - Já respondeste meu anjo! É amor.
                Pedro falava a palavra amor em um sadismo inacreditável. Ele mesmo dizia para si: - Estou um espetáculo!
                Ele a arrastou para sua cadeira e pediu:
                - Não diga nada meu anjo. Apenas prove.
                Ela feliz com a surpresa obedeceu. Provaste a carne que quase derretia em sua boca:
                - Delícia. Mas amor por que tudo isso?
                Ele olhando em seus olhos apenas repetia:
                - Coma coma!
                A sua frente pôs-lhe o presente. O perfume que não comprou ele a dera. Estava ali, encaixado e com fitas verdes. Ele sabia que ela adorava verde. Ela de imediato apanhou o presente e abriu como uma criança. Olhava-o e sorria. Nem desconfiava. Deu a volta na mesa e o beijou. As palmas das mãos postavam-se em seu rosto.
                Ele sorria ao vê-la feliz. Pensou: - É muita felicidade para uma prostituta não? Imagina seu pai Amanda. Seu Leopoldo. Trabalhou feito um remador de Bem-Hur para te educar e você se mostrar uma prostituta.
                Ao dizer isso ele sorria e diz olhando nos olhos dela:
                - Eu te amo!
                Sabia que declarações assim ditas logo após tê-lo enganado talvez a angustiasse. Isto é, caso ela ainda tivesse um senso moral mínimo. Quando já estava alta do vinho e gargalhando entre conversas diversas ele perguntou sóbrio:
                - Amanda meu anjo. Mulher dos meus filhos...
                Ela, como quem se deixasse levar por um roteiro implícito conduzido por ele falava:
                - Diga Pedro, meu eterno amor!
                E ele disse:                                                                                            
                - Por que escolheu a si como puta?
                Após dizer isso ele sorriu. Cravou o garfo em um pedaço de carne e esfregou-o na porcelana branca manchada de molho. Era o seu último pedaço. Agora queria comê-la viva.
                - Que palhaçada é esse Pedro? Está bebendo?
                Ele que era só sorriso mostrava sua taça límpida. Não gotejou nada na mesma e ela por sua vez estava já tomada pelo calor do álcool do vinho. Pensou consigo: - Dominei-a. Idiota.
                - Não meu anjo – insistia na palavra anjo como quem usasse um cálculo preciso – não estou bebendo como pode ver. Diga-me, por qual motivo você, educada em escolas de freiras escolhei essa nobre profissão de... – parou para por o vinho em sua taça. Ergueu-a de encontro à luz e soltou as sílabas como música no ar: Pros-ti-tu-ta!
                Sentiu a cabeça pesar repentinamente. Parecia que as palavras de Pedro, soletradas assim era cada sílaba uma rajada de metralhadora. Sentia lâminas nas palmas das mãos. Os olhos turvos viam a imagem de Pedro mais jovem, quando trocaram os primeiros olhares, o crucifixo em cima da TV. Via o Cristo sangrando e a lembrança do padre Adalto, em sua missa crisma pregando: - Leiam em Crônicas, capítulo dois, 23: 13! Ela lembrava as últimas palavras frescas em sua mente: Traição, traição!
                - Pedro eu não fiz nada. Eu te juro!
                - Você não me traiu anjinho caído! Você traiu a Deus, os seus pais, os nossos... Ou melhor, meus, pois você não tem e nem os liga, amigos!
                - Não vou ficar aqui ouvindo suas lições de moral! Quem é você? Já não estou me sentindo bem.
                Ela entrou no banheiro e chorou copiosamente. Agarrada ao vaso soluçava e sentir a fermentação do vinho com a carne vibrar em seu estômago. Sentia de fato uma meretriz. Nunca havia sido tão humilhada, mas ao mesmo tempo percebia que Pedro é quem era vítima de tudo. Ele não a humilhara. O que fizera ela de sua vida. Uma vida de mentiras e hipocrisia. De prostituição em cada ato, em cada vez que cedia a um prazer barato em troca da obrigação, em cada deslize em troca da edificação da própria alma. Lembrava dos livros que seu pai comprara desde a infância, dos cursos pagos, das missas intermináveis, e como tudo isso não passava de um teatro barato. Ela era de fato uma prostituta tão barata quanto às das boates noturnas.
                Pedro colheu a fita no gravador e foi ao escritório. Era de fato uma obra de arte. Mas tudo aquilo era muito sujo. Era imunda a face de sua esposa, assim como era indizível seu ato, seu teatro. Pensou que bem melhor poderia ter sido uma surra. Ela choraria calada, mas, uma surra não emenda um caráter perverso. Além disso, ele perderia sua razão, seria um bárbaro, e não mais uma vítima. Pensou no amor que ainda sentia por Amanda. Em cada gesto que ela lhe dedicara e ele a ela. Como podia aquilo. A mesma mulher que lhe cortava o cabelo aos domingos, que lhe comprava passagens, que lhe tirava aborrecimentos, era a mesma pessoa que lhe traíra. A palavra traíra sova-lhe nos ouvidos como um cantochão de barítonos. Chorou. Chorou e via os cabelos dela ao vento. O sorriso límpido, que era sua posse, sua conquista mais satisfatória, era mera ilusão. Não a possuía senão por empréstimo, por algumas horas fugidias tinha em suas mãos seu corpo. Mas o corpo é uma miséria, pensava. Um corpo tão somente é tão somente um pecado.
                Voltou para cansado. Parecia que tinha a alma pisoteada por elefantes. Abriu o portão que dava para o jardim. A ferrugem nas dobradiças rangeu.  Subiu os degraus e ao abrir a porta, de frente à escada viu o sangue escorrer pela escada. Subiu e a achou no chão com os pulsos cortados. Olhou-a e sentiu dó, não queria que tudo terminasse assim. Há poucas horas estava feliz sentindo a brisa do mar, mas, a vida tinha disso, tinha do livre arbítrio quando por fraqueza a alma torpe fala para si: - Eu quero o pecado. O gozo nos erros. Será que Amanda tivera prazer naquele teatro todo?
                Ao seu lado um bilhete ensangüentado. Teve a esperança de ser um pedido de desculpas. Certamente se arrependera e não suportava a culpa. As mãos calmas puseram-se trêmulas quando leu:
                - Pequei. Traí e não foi a primeira vez, porém foi a última. Espero que esteja feliz, pois no pecado eu fui feliz.
                Olhava pela janela que dava para o porto. O sol parecia-lhe maravilhoso.

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