quinta-feira, 18 de junho de 2020

DIAGNÓSTICO DO TEMPO




O verso, soldado nas vigas do tempo
Nem sempre cede às erosões
A tudo que lhe é adverso, rufiões
Que grunhem por ausência de talento

A sophia, perene é única e verdadeira
Não lateja e nem porfia em toda esquina
Onde o falso vate se amesquinha
Qual verso paraplégico que serpenteia

A Lei, que por vezes manca vacila
É a ilação das tão novas gerações
Ausentes de vossos corações
Uma razão... centelha que já não mais sibila

A horda de pigmeus infantes
Bastilhas se quedaram esfaceladas
Espectros do mal mais triunfante
Gigantes de pernas agrilhoadas

Eis o exame de uma era burlesca
Onde o asco se ameniza com a lembrança
Bucólicas paisagens tão pitorescas
Melancólico o tempo da intemperança

Antonio Sávio Nunes de Queiroz

VIDA




Do feixe primeiro que luzia
Brandia aos tímpanos o berro agudo
Varão ou varoa que nascia
Despido de espada ou qualquer escudo

A vida que se perfaz no maçarico
Da forja que molda cada caráter
Burila a rima em estribilho
Fogos brilhantes para o bláster

E ai de quem por ela queira atalhos
Encurtar a cruz, vingar o peso em etéreo
Teu corpo se fará em mil retalhos
Teus ossos dinamitados sem nenhum mistério

É mister, pois quem ergue-se na cruz
Um Cristo, um Jó para não carecer de guia
Como um oleiro com água fria
Faz a liga, molda o barro em alcatruz

A vida, pois que nada dela sabe-se
É mistério no espectro a se submeter
Também é decisão que insere-se
A moral a golpes no talho do caráter.


Antonio Sávio

SOBRE DEUS




Da bigorna que com malho se perfila
No compasso que molda fúlgido
O aço que exausto se enquizila
Se refaz afilado outrora túrgido

É mister, supremo artista, perfeitíssimo
Fulgurante, de tez e ações benevolentes
Esperança em teus braços afabilíssimos
Hosana ao que tudo fez e faz preexcelente

Em caridade se teu nome se circunscreve
Em paciência se faz em teu prelúdio
Esse afago é ouvertures para quem te segue
Aos humildes tem a graça do interlúdio

Que em cantochões ecoem não o teu nome
Mas as ações já azeitadas em tua cruz
Que os joelhos se dobrem de cada homem
Que erga aos céus cada alma que conduz

Antonio Sávio.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Onipresente.

Deitado ao sol à fitar o firmamento
As nuvens desenham-se ao sabor
Da minha mente
Surge tua tez, nívea ao fundo róseo
Do fim de tarde a sangrar.

Teus poros, teus olhos, teu riso
É a arte tornada viva, harmonia,
Piceladas certas, és poesia
O verso, o compasso...certo, perfeito, conciso.

Deitado nos fins de tarde,
Tua presença, embora distante
Insiste em meu ser. Como não sei,
Não se prova o amor silente
Não se sabe da paixão ardente,
Mas sinto-te e isso basta-me,
Por mim nada mais saberei.

Foto: Céu Ardente - Renato Lourenço.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O DOUTORZINHO


    Entre os figurões da cidade, poderíamos dizer que lá estavam todos. Os de praxe, o tédio inarticulado dos chavões. Doutor Flávio, delegado Lisboa, doutor Auceu, e os demais “insetos em volta da lâmpada” que geralmente os acompanham.
    Era churrasco para comemorar a formação do filho do anfitrião da casa, Pedro Ivo, que agora tinha o rebento formado, adivinha em quê? Medicina é claro. No país do futebol, não se comemora a formação de alguém que ensine os outros a ler ou a escrever. No país do futebol a formatura que interessa é aquela que conserta-se canelas, dê pontos, remende cabeças, e, não podemos deixar de dizer, também salva vidas.
    Davi, o recém-formado, agora chamado de “doutorzinho” era o típico doutor interiorano. Esforçado, hájil, gentil e semi-analfabeto. Nos primeiros ganhos de sua clínica o primeiro in vestimento foi o de sempre. Carro grande, um gasto considerável em um som automotivo, festas populares regadas a whisky, onde, obviamente ele financiava tudo, uma vez que dinheiro não era problema.
    A mãe, que incialmente era só orgulho, começara a perceber a nova rotina que adquirira o filho depois que retornara a cidade. Era um misto de orgulho e angústia. Perguntava ela ao marido:
    -    Pedro, será que não está demais essas farras desse menino? Precisa dessa gastança de dinheiro?
    O pai muito acertivo, com o rádio ao ouvido refutava:
    - O menino pessou a vida inteira com a cara enfiada nos livros, trabalha feito um condenado e você não quer deixar o coitado se divertir? Que mal tem meu Deus? Que mal tem?
    Inadivertidamente o “doutorzinho” seguia sua rotina diária. Sua fama na cidade pequena se espalhara. Competente, gentil, compromissado. Percorria as sertania e atendia, inicialmente, a todos de bom grado. As mais idosas, deslumbradas com o jaleco branco e os olhos verdes eram mais devotas: - Parece até nosso Senhor Jesus Cristo!
    O “doutorzinho” agora santificado, tinha suas rédeas mais soltas na sociedade. Opinava sobre economia, futebol, literatura. As verdades fugiam-lhe da boca qual pássaros em fuga de um viveiro:
    - Saramago é o maior! Não tem escritor no mundo maior que Saramago.

    Para o bem da verdade é que gemia mudo em sua estante um esquálido exemplar de “Ensaio sobre a cegueira” que nunca passou das orelhas. Porém, a seguurança encantava. Entre uma dose e outra, desciam as carnes e peixes de primeira, que, acompanhado da platéia segura, os “insetos em volta da lâmpada”, jamais questionariam. As opiniões eram emitidas sobre todos os assuntos. Se o apelido carinhoso de “doutorzinho” já não o tivesse se espalhado, poderíamos dizê-lo como “rosa dos ventos”. Seu saber embora médico, servilha-se para tudo sob o sol.
    Entre um xarope e outro receitado, entre uma gripe e outra diagnosticada, entrara uma nova paciente. Olhos verdes, tamanho diminuto, cabelos tingidos de sabe-se lá que cor. Adentrou no consultório feito uma aparição cristã. Em êxta-se o nosso quase cristo de aldeia a atendeu com voz trêmula, mas discreto.
    - O que posso ajudar?
    - Oi doutor, não consigo respirar direito. Dói-me a garganta e o peito quando respiro.
    Retirou-lhe a camise, enconstou o estetoscópio gélido em seu seio e aferiu—lhe a pressão. Procedimentos básicos de um bom profissional com exceção do olhar demorado sobre os seios rosados.
    Curiosamente a jovem que consultada de forma tão atenta, que atendia pelo nome de Clarisse, rapidamente piorava, as consultas eram por assim dizer, quase diárias. As troca de olhares eram mais densas. O que as bocas falavam sobre as necessidades diárias da jovem malsã, não condiziam com os desejos ardentes escorridos dos olhos dos dois jovens pecadores.
    Tão logo não tardou o casamento. Os mais etusiasmados, ainda na festa já cobravam:
    - Quero um neto viu rapaz? E é para logo!
    Cobrava discretamente o pai da noiva, que, para o bem da verdade, um neto era a ssinatura de uma garantia social para sua filha para o resto da vida. Os pais do noivo por sua vez discordavam entre si sobre o casamento tão rápido. O pai queiva-se que o filho aproveitara pouco a vida de solteiro. Poderia ter, em seu palavriado calculado, “ter ganho mais experiência antes de casar”. Nisso resumia-se epenas a mais tempo de bebida e sexo sem compromisso. A mãe ao contrário, vira na nora a possibilidade inadiável de dar uma vida mais regrada ao filho, e incuti-lhe responsabilidades que ele sequer imaginava.
    Consumado o casamento a vida ia bem. Era um casal que a cidade admirava e envejava. Ele, um médico renomado, simpático, admirado por todas as castas sociais,. Ela, uma jovem belíssima, de competência questionável – antes de se casar com um médico, é claro -, mas que após investir na maior loja de roupas da região converteu-se do dia para noir em “personal estylist”. Profissão muito rara nos dias de hoje.
    A vida social não era menos frenética. Casamentos, batizados, aniversários. A vida era uma festa que se dividiam entre um ponto e outro dado, entre uma receitazinha azul e outra cedida as senhoras que pouco dormim. Entre uma festa e outra, não raro, era convidado a discursar em aniversários. A da vez era Amanda, uma jovem de quinze anos, onde tiverra o privilégio de ouvir tão nobres palavras:
    - Jovem de tal pedegri, filha de tão nobre família, já vejo em seus olhos não outro talento senão a devoção que este humilde servo de Deus, que fala essas palavras também dedicara a sua vida. A medicina! Percebendo ou não, ao exaltar sua própria profissão acabava quase sempre em diagnosticar as demais profissões como um câncer social. A sociedade em sua visão era dividida tao somente em duas espécies: Os médicos, e os frustrasdos que não conseguiram sê-lo.
    Percebendo a voz já trôpega do marido Clarisse modereva-o:
    - Amor já está bom.
    Tentava não fazê-lo parar de beber, pois isso já era impossível, mas apenas diminuir suas doses. Por vezes, sem que o mesmo percebesse, adicionava cargas de gelo, na esperança de enfraquecer o destilado. Nesta mesma noite, voltavam para casa em sua 4x 4, com mais trẽs amigos no banco de trás. Dois médicos e o delegado de plantão. O carro aumentava de velocidade e os olharees se cruzavam de medo dentro do veículo.
    - Não é melhor diminuir doutor?
    Ele, formado em medicina, especialista em estradas carroçais receitava:
    - Sei o que estou fazendo “homi”. É o doutor quem está aqui. Confie!

    Cinco minutos depois o carro capotara, nada de grave aconteceu, apenas Clarisse que sentia uma dor na perna. Todos saíram no carro e apressadamente a viram ensanguentada em seus membros inferiores. Um caco enorme de vidro dilacerara sua veia femulral. O sangue corria frouxo, largo, vibrante feito um mar. Ele tentou agir. As mãos trêmulas e mal trinadas não foram frimes o bastante. Os únicos gestos que estavam de fato habilitadas a fazer era o segurar de copos, os acenos, os apertos de mãos. A morte foi certa. Sentado ao lado do corpo, via-se o “doutorzinho” refletido no caco de vidro entre manchas.
    A lua jazia morna no céu. A dor era sua única espectadora. 

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Ainda que...

mar luz nuvem céu mulher Por do sol fotografia luz solar manhã onda vento modelo segurando cachecol caucasiano fotografia beleza véu sessão de fotos

Ainda que sopro do verbo
Tua palavra burilada em versos
Que gotejam das calhas
Dos cantos dos olhos
Que me fitam em silêncio
Amordaçados em segredos
Que berram dentro de ti

Ainda após os anos
És a mesma dentro da noite
Dos gozos não tidos comigo
Dos beijos negados no tempo
Que desgastam castelos nos prados
Mas que é impotente dentro de ti

Ainda que meus versos se recusem
Teu nome lateja na rima
Como uma esgrima, uma dança, uma valsa
Que sangra poemas em silêncio
mas ainda é tempo de ser feliz.

Antonio Sávio

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Sobre poesia contemporânea, com ênfase no caso brasileiro

Postado por Lorena Miranda.


Cartas a Um Jovem Poeta é a compilação das dez cartas que Rainer Maria Rilke endereçou, no período de 1903 a 1908, a um jovem aspirante a poeta. Nelas Rilke discute a natureza da poesia e daquele que dela se ocupa, entre outras reflexões sempre agudas, serenas, cuidadosas, sobre os mais variados temas.

Mas passemos de uma vez ao fato interessante: o livro se tornou, contemporaneamente, em verdadeira Bíblia do poeta wannabe. Cansei de ver e ouvir seus trechos serem utilizados para fundamentar as inclinações literárias de meus companheiros de geração. Sobretudo a idéia expressa no trecho a seguir:

Pergunta se seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os a outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu de aconselhá-lo –, peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer nesse momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto, acima de tudo, pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila da sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?”. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa sua vida de acordo com essa necessidade.


Assinalemos, antes de tudo, a razoabilidade do trecho. A lição é simples e digna: que não se pronuncie aquele cuja contribuição não se impuser como necessidade, oferecendo-se ao invés como coisa supérflua, fruto de vaidade ou tédio ou o que for. Para Rilke, o poeta sabe fazer essa distinção, como é possível saber que se desafina ao cantarolar uma música, ou que não se é bem-vindo num determinado ambiente.

Se é realmente possível sabê-lo, ainda assim é preciso notar a sutileza da noção em jogo e a conseqüente dificuldade da tarefa de abarcá-la. Há cem anos, quando Rilke teceu suas considerações, “voltar-se para si mesmo” ainda não tinha o significado viciado que tem hoje, quando a tendência espontânea geral é ler frase ao pé da letra como “ignorar tudo que não seja meu umbigo, seguir meus instintos primevos e deplorar toda e qualquer exterioridade” – ao passo em Rilke tinha em mente, pelo contrário, o colocar-se em perspectiva para buscar sua genuína vocação. Ele se permite o uso de termos metafóricos, por vezes um tanto vagos, porque nem sequer lhe passa pela cabeça que “escavar dentro de si mesmo” possa prescindir de uma consideração profunda dos arredores em que o ser se encontra, único meio de localizar-se com a devida precisão. (O próprio tom fraterno, jamais perdendo de vista a existência concreta de seu interlocutor, empregado por Rilke em Cartas a Um Jovem Poeta já bastaria para demonstrar que a apologia da solidão presente no livro jamais contradiz e em verdade depende da noção de alteridade somente por meio da qual um sujeito, em sua solidão, pode chegar ao conhecimento de si mesmo.)

Mas o contemporâneo aprendiz de poeta, ao invés de uma reflexão honesta sobre seu papel – sua vocação – enquanto escritor, vê nas palavras de Rilke a confirmação do que ele (o aprendiz) sempre sentiu ser a verdade sobre si mesmo e sobre o mundo: só ele próprio tem existência concreta e às favas que vá o mundo.

Essa atitude redunda no desdém dos poetas contemporâneos pela tradição em torno da qual se consolidou o gênero poético e no pouco estudo que dedicam aos únicos mestres possíveis a todos que se desejem continuadores de tal arte. O poeta contemporâneo se basta a si mesmo, ou assim se pretende. Nenhuma erudição é páreo para sua escrita automática, único modo de captar a “fugacidade e imponderabilidade” de seu ser e sua existência.

Porém errôneo seria dizer que tudo isso se dá consciente ou voluntariamente; que essa coisa amorfa chamada poesia contemporânea, sobretudo a brasileira, erige seu programa em torno da negação da tradição e da prática do automatismo. Não; não se pode falar disso senão com respeito à primeira metade do século vinte, quando eclodiu e enraizou-se culturalmente o movimento modernista. Nós, literatos do século vinte e um, estamos sem rumo há pelo menos cinqüenta anos e nada seria mais risível do que atribuir um “programa” a nosso desnorteamento. Nos determina a pura e simples política da idiotização generalizada, que se edifica sobre as bases sólidas dos quinze anos de acefalização em que consiste a vida escolar do brasileiro. De modo que o bom poeta o qual, contra a corrente e se valendo de seus próprios recursos, consiga suspender a cabeça para fora dessa água causticante – encontra apenas o silêncio gélido da falta de leitores. Vá lá que uns ou outros, sobreviventes como ele, venham a apreciá-lo; ainda assim, para um poeta produzindo no Brasil nos dias de hoje, é precisamente utópico sonhar com um grande alcance para suas obras. Ou seja, ele pode até fomentar a revitalização de sua cultura a longo prazo, mas deve estar certo de que não viverá para colher os frutos últimos desse processo.

É verdade também que o desprezo pela tradição poética nem sempre se dá no nível do discurso. O que se vê no mais das vezes é um puro e simples despreparo intelectual, que produz no protoartista um embasbacamento paralisante diante de qualquer poema de Camões, estabelecendo léguas de distância entre o aprendiz de poeta e o que lhe parece um cânone inalcançável. Os brasileiros hoje não temos, para início de conversa, qualquer noção de ritmo, de musicalidade poética. O uso de métrica na escrita é tão estranho à forma de nosso pensamento quanto cores para alguém que tivesse morado a vida toda num iglu na Antártida. Qualquer farmacêutico há cento e cinqüenta anos seria capaz de compor um sonetinho duro, desses bem bobos, fórmula pronta. Mas os poetas de hoje (esqueçamos, em absoluto, os farmacêuticos) continuam prestando favores ao Concretismo de cinqüenta anos atrás e ao poema-pílula que era muito interessante em 1922 – apenas porque ambos, embora em teoria representem a epítome do tecnicismo, a hipérbole da poesia condensada, oferecem uma máscara fácil aos que se queiram passar por muito inteligentes sem ter em verdade o que dizer (nas palavras de Rilke, sem terem a vocação de qualquer coisa dizer).

Trata-se, com efeito, da convergência de diversos fatores culminando no que se pode sem medo chamar de ausência de cultura poética no Brasil. (Tendo a acreditar que alguns desses fatores sejam mais ou menos universais e se apliquem à situação da poesia no Ocidente como um todo – não faço a menor idéia do que se passa em culturas mais exóticas –, porém me furto a afirmar qualquer coisa nesse âmbito maior, pois me falta conhecimento de causa específico; e, principalmente, é possível que a cena em países mais desenvolvidos seja muito superior à do Brasil, no mínimo em virtude de uma educação mais decente, tanto de base quanto superior.) O primeiro desses fatores foi o estabelecimento de uma nova noção de poesia, de uma nova dicção poética – aquela inaugurada pelo Modernismo e desde então esgarçada até sua sublimação para além da literatura, com o poema pulverizando-se para fora do papel, reduzido a seus átomos e lançado ao espaço sideral, transformado em vacas de plástico pelas ruas de São Paulo e apresentações em formato Flash e Power Point.

Essa mudança no modo de se abordar a poesia a partir do início do século vinte já surgiu como uma tentativa de se abarcar a novidade – notadamente, a velocidade – da vida moderna, cujo símbolo são as grandes metrópoles globalizadas. Porém o que se chamava de “a ágil modernidade” do pós-Primeira Guerra, se comparado com o mundo em que vivemos hoje, provavelmente evidenciará mais diferenças entre ambos do que entre o Modernismo e o passado que ele tentava refutar. E no entanto nós gostamos de nos chamar pós-modernos, assinalando nossa filiação a um movimento que já não nos diz respeito, e vivemos até hoje a desfiar o novelo desgastado de uma época cujas soluções estéticas já não respondem pelo que somos.

Em suma, a liberdade poética instaurada pelo Modernismo, associada à pouca educação do brasileiro contemporâneo (e me refiro inclusive ao brasileiro universitário, ao aprendiz de poeta), em cujo espírito se reproduzem aquelas noções de doce complacência em relação a si mesmo e grande preguiça quanto ao que está fora dele, gerou um monstro desfigurado, um arremedo de expressão artística inteiramente prescindível àquilo que seria o fim mais nobre da poesia dentro de um dado contexto social: dar voz simbólica e distintiva aos traços desse contexto, localizando-o no tempo, desenvolvendo sua consciência de si próprio.

Tenha-se o Desconstrutivismo como método de análise da realidade e o individualismo fazendo-se confundir com individualidade numa cultura de analfabetos funcionais e eis a genealogia da poesia contemporânea brasileira. Só Deus sabe em que medida é consciente a concatenação entre políticas públicas visando apenas a derreter nossos cérebros e a onda de discursos vazios que as universidades despejam sobre o imaginário coletivo – o fato é que tudo tem convergido perfeitamente para a paralisação de qualquer capacidade crítica e esforço de autoconsciência de nosso país, como um barquinho cujos remadores trabalhassem em sentidos contrários, fazendo-o girar sem sair do lugar.

Há pouco mais de cinqüenta anos, o poeta João Cabral de Melo Neto já alertava para os riscos do que se poderia chamar de falta de responsabilidade ou de consciência do poeta com relação a seu ambiente sócio-cultural. Não que Cabral exigisse do poeta um posicionamento político ou crítica social vazada em arte; seu argumento se desenvolve no sentido de que cabe ao artista pesquisar as formas de expressão mais adequadas ao seu próprio tempo, do contrário seu trabalho resultará inútil, indiferente (e para Cabral as soluções poéticas propostas por seus contemporâneos não passavam de paliativos preguiçosos à verdadeira pesquisa existencial inerente à composição de poesia). Não se trata – reitero – de rejeitar a “arte pela arte”. O que ocorre é ser variável, ao longo do tempo, aquilo a que se pode chamar de “a demanda estética da realidade”. Pode-se argumentar, por exemplo, que os dias atuais já estão saturados da dualidade “arte social” versus “abstracionismo porra louca”; que alternativas a essas correntes estéticas existem, ainda que nossa auto-estima de sobreviventes pós-apocalípticos amputados nos faça duvidar de termos forças para um retorno, digamos, à poesia narrativa, de formas determinadas, difícil de compor pois dependente da apropriação de um modelo milenar, cujo aprendizado só pode ser feito pelo estudo longo e cansativo de sua tradição. Ou seja, talvez o que se deva fazer para resgatar a poesia contemporânea do limbo em que se encontra seja reeducar formalmente os novos poetas, desfazer o legado modernista-desconstrucionista em suas consciências, reequipá-los com os instrumentos milenares de composição poética, já de todo extirpados do seu bojo de conhecimentos – e então quem sabe comecemos a ouvir vozes atuais, vozes de poetas que nos representem, que nos deem a ver a nós mesmos. É a essa preocupação com a manutenção da eficácia cultural da poesia, indiferente por meio de qual solução estética se dê, que João Cabral de Melo Neto chama seus contemporâneos.

Em texto intitulado Da Função Moderna da Poesia (1954), ele descreve do seguinte modo o tipo de poesia que é alvo de sua crítica:

A necessidade de exprimir objetiva ou subjetivamente a vida moderna levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia, à descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos. Afirmá-lo não significa dizer que cada poeta de hoje é um poeta mais rico. Pelo contrário: esse aprofundamento deu-se por meio de uma como desintegração do conjunto da arte poética, em que cada autor, circunscrevendo-se a um setor determinado, levou-o às suas últimas conseqüências. A arte poética tornou-se, em abstrato, mais rica, mas nenhum poeta até agora se revelou capaz de usá-la, em concreto, na sua totalidade.

(...) O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. (...) O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.

(...) Tudo o que os poetas contemporâneos obtiveram foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer tipo de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma consideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou até ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto.


Como não podemos dizer que nosso processo poético, desde João Cabral, tem evoluído, resta-nos apagar nossos garranchos, jogar fora nossos cadernos de esboços, e começar do zero lá de onde tais severas e sóbrias palavras foram pronunciadas.

Este é um artigo pessimista, para cujos fins não interessa enfatizar as parcas reservas de esperança que nos restam, ou os casos excepcionais de poetas verdadeiros – poucos, muito poucos – vistos pelo Brasil nos últimos cinqüenta anos. A inclinação poética existirá enquanto houver homens, e está na estrutura da natureza que, entre todos, n’alguns esta inclinação resulte em traço preponderante, impelindo-os à tradução simbólica da realidade nisso que conhecemos por linguagem poética. Nada garante, entretanto (e, em verdade, os nossos tempos dão perigoso atestado disso), que um povo não possa enveredar por caminhos antinaturais, destruindo-se; que a poesia num homem não se possa perverter em loucura, que o simbolismo, em vez da luz, não possa ser posto a serviço das trevas.

Fonte: http://blogadhominem.blogspot.com.br/

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Coração de Clorofila.


O médico assassinado na lagoa e ambientalista, nada...
A mãe de família assassinada na porta de casa, e ambientalista nada...
A "novinha" estuprada, e a ambientalista nada...(ainda bufou contra o machismo)...
O estudante assassinado no bar, no ônibus, na garagem, quando saia de casa, quando entrava, quando tomava banho, quando comprava pão, quando tomava a hóstia...e ambientalista nada...

Mas no final de semana a ambientalista sai no jornal, pomposa em seu estandarte, faceira frente a TV em plena atividade. Furiosa contra a consciência do mundo, gente sem coração.
Acabara de estourar uma rinha de canários e galos de briga. Agora sim, poderia dormir tranquila e sonhar com bichos e florestas em seu colo verde que agora arfava mais calmo em seu coração onde bombeia sangue a base de clorofila.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O anti-revolucionário

eduardo-paulo-da-silva-prado
Passados mais de 120 anos, ler Fastos da ditadura militar no Brasil é um exercício de estranhamento e melancolia, pois essas páginas proféticas antecipam os vícios das nossas lideranças políticas.

As mudanças políticas da história brasileira assemelham-se em alguns pontos: começam de maneira histriônica, assumem caráter fantasioso, jamais realizam o prometido e… enriquecem seus protagonistas. Apresentado desta forma, tal conjunto parece uma generalização espúria, mas o leitor apartidário sabe que ele guarda certo fundo de verdade. E de 1889 até hoje, em nosso complexo período republicano, deve-se adicionar a essas características uma recalcitrante tentação ditatorial.
A república, aliás, nasce sob o signo da ditadura: da “proclamação” de 15 de novembro — eufemismo típico da nossa nomenclatura histórica, que substitui, neste caso, a palavra “golpe” — à constituição promulgada em fevereiro de 1891, realiza-se uma única eleição, para escolher os membros da assembléia constituinte, pleito que as oligarquias dos estados manipulam e cujos resultados as chamadas mesas eleitorais falsificam. O país teria novas eleições, igualmente manipuladas, apenas em 1º de março de 1894, quando é escolhido para a presidência Prudente de Morais. Até sua posse, em novembro do mesmo ano, a balbúrdia se instala: Deodoro da Fonseca comanda o governo provisório; a seguir, é nomeado presidente pela assembléia constituinte; fecha o congresso meses depois; finalmente, entre golpes e contragolpes, renuncia em favor de seu vice, Floriano Peixoto. Este apenas dá continuidade à ditadura, chegando a depor governadores estaduais, às vezes com uso da força. A Revolução Federalista — na verdade, uma guerra civil — começa em fevereiro de 1893; em setembro do mesmo ano, com a Revolta da Armada, o exército se divide. Apesar da crise disseminada por todo o país, parcela dos militares não quer eleições, mas Floriano, que depende do apoio dos paulistas, vê-se obrigado a convocar o pleito que elegerá Prudente de Morais. A guerra civil só terminaria em 1895.
Durante os primeiros meses da república, entre novembro de 1889 e junho de 1890, um brasileiro residente na Europa escreve, utilizando o pseudônimo de Frederico de S., seis longos ensaios sobre o golpe militar e seus desdobramentos. Publicados na Revista de Portugal, que pertencia a seu amigo íntimo, o escritor Eça de Queirós, os textos, reunidos sob o título de Fastos da ditadura militar no Brasil, são paradigmas do melhor publicismo, análise cética, arguta e irônica da ditadura que transformou o país politicamente estável numa farsa cujos principais personagens — exatamente como nos dias de hoje — são a demagogia, o empreguismo e a corrupção.
Sob a assinatura de Frederico de S. escrevia o fazendeiro, empresário, banqueiro e bon vivant Eduardo Paulo da Silva Prado, que inspirou a Eça de Queirós o personagem Jacinto, de A cidade e as serras. Poucos conseguiram ser panfletários tão geniais como ele — um “reacionário magnífico”, afirmou Wilson Martins. O curioso, no entanto, é que jamais, até o golpe republicano, ele se interessara pela política nacional, ainda que fosse estudioso da nossa história. Capistrano de Abreu, também seu amigo, lembra, no belo perfil que escreveu sobre Eduardo, em 1901, sua “repulsão” à política. Era conservador, sem dúvida, mas de um tipo especial, ainda segundo a definição de Capistrano:
Em seu monarquismo entravam elementos muito diversos. Humilhava-o a inauguração de levantes e pronunciamentos militares vigentes na América espanhola, do que o Brasil se tinha mantido imune; chocava seus instintos de artista ver abolida uma instituição antiga, a única antiguidade americana, elo que prendia uma cadeia ininterrupta de nove séculos; indignava-o a indiferença, a bestialização dentro do país; ofendia-o a ironia do estrangeiro; e em todos estes sentimentos confirmou-o o rumo que assumiam as coisas.
Tornou-se publicista, dessa forma, por acaso, premido pelos fatos e por um agudo senso ético. E sua oposição à ditadura o levaria a escrever outro livro, A ilusão americana, publicado durante o governo Floriano Peixoto, que decreta sua prisão e manda confiscar a obra. Prado, à época residindo na Fazenda do Brejão, em São Paulo, fugiu a cavalo para a Bahia e, de lá, novamente à Europa.
Risada universal
Passados mais de 120 anos, ler Fastos da ditadura militar no Brasil é um exercício de estranhamento e melancolia, pois essas páginas proféticas antecipam os vícios das nossas lideranças políticas, revelando desalentadora verdade: as piores notícias que encontramos na mídia não são novas, mas apenas a repetição bolorenta de crimes e abusos praticados desde sempre. Ao mesmo tempo, a obra oferece a narração das conseqüências do golpe republicano no calor da hora, sem meias palavras e, melhor, sem o distanciamento histórico e ideológico dos livros didáticos ou das teses esquerdistas, em que jamais se lerá o que de fato aconteceu:
Todas as instituições representativas estão abolidas. A liberdade do cidadão está confiscada. Hoje, no Brasil, não há tribunais, não há leis que protejam o indivíduo contra a violência quando ela vem do governo. O cidadão é preso, deportado, sujeito a todas as agressões oficiais, sem ter recurso nenhum contra elas. O poder armado dos soldados e dos marinheiros não tem outro limite além da sua vontade. E o regime da suspeita, da delação, as cenas de perseguição política, cidadãos eminentes transportados pelas ruas entre baionetas, espetáculos desconhecidos da população brasileira, tudo mostra que está destruída a civilização política do país.
O governo não se contenta em prender e banir centenas de pessoas, mas também censura ou empastela os jornais que ousam demonstrar imparcialidade e dar voz à oposição. E o discurso dos golpistas — repercutido pela parcela subserviente da imprensa — é o mesmo de todos os revolucionários: quem se opõe a nós, opõe-se à pátria; “o Governo Provisório respeitará todas as opiniões, contanto que não sejam contrárias às do povo, do exército e da marinha”; a revolução — que não passou de uma quartelada — busca a “salvação pública”; a minoria que toma o poder, diante do silêncio abobalhado da população, governa por decreto, legisla “com frenesi”, altera “as relações sociais, políticas e jurídicas a seu único e bel-prazer”; institui-se o “absolutismo militar”. Eduardo Prado sintetiza o estupor dos que se mantêm lúcidos:
[...] Hoje, o habitante do Brasil não sabe a transformação que um ministro quis dar às leis senão pela surpresa que experimenta, pela manhã, ao ler nos jornais um decreto que altera subitamente as mais importantes reações sociais. E cada dia os fatos provam brutalmente que o poder tudo pode. É portanto natural que cresça entre o povo o temor de quem tem um poder tão absoluto; do temor passa-se à lisonja, da lisonja desce-se à abjeção. Os governados aviltam-se. Os governantes abusam.
E completa, em seu último artigo, ainda falando da perene chuva de decretos: “Aquilo já não é militarismo nem ditadura, nem República. O nome daquilo é carnaval”.
Mas como se comportavam os grandes revolucionários, os supostos salvadores da pátria? A pena implacável do polemista relata o que os livros de história escondem:
O militar que por sua própria deliberação tomou o lugar de chefe de governo marcou a si mesmo um ordenado superior ao de todos os presidentes de república do mundo, exceto o da República Francesa. E o país ainda lhe deve ficar grato, porque, se ele quisesse levar o Tesouro Nacional para a sua casa, ninguém o poderia impedir. Os cidadãos que se constituíram ministros dobraram os ordenados antigos de ministro. Estes simples atos indicam claramente que o Governo Provisório, em matéria de delicadeza e de escrúpulo, se parece com as demais tiranias militares da América. Os prets dos soldados, os soldos dos oficiais, que criaram a nova ordem de coisas, foram aumentados, e foram constituídas novas pensões militares. Um suntuoso palácio foi comprado para a residência do marechal chefe do Estado.
Eduardo Prado insiste que se faça a conta de quanto recebem os membros da numerosa família de Deodoro, agora empregada e “largamente remunerada pela ditadura”. E em abril de 1890 ataca novamente: “As pensões a militares e, de vez em quando, a alguns civis, enchem colunas e colunas do Diário Oficial; as comissões a amigos tanto no Brasil como no estrangeiro, as gratificações, as aposentadorias sucedem-se em conto”. E não deixa de apresentar, com todas as cores, o lado grotesco, digno de zombaria, dos que, subitamente, podem fazer do Estado o quintal de suas casas, o espelho de suas egolatrias:
A ditadura, quando não se notabiliza pelo crime, distingue-se pela vaidade. É o governo dando uniformes fantasiosos e teatrais ao exército; o ministro da Marinha, ordenando que todos os oficiais tenham os mesmos cordões de ouro dos generais; o governador do Rio de Janeiro viajando com pompa soberana, precedido de clarins, recebido por uma sociedade musical chamada Lira dos conspiradores, para espantar pelo fausto um país acostumado à simplicidade de Dom Pedro II; o ministro da Marinha recebendo dos repórteres navais da imprensa os bordados de sua farda de almirante e regando com champanhe a dádiva; o retrato do sr. Rui Barbosa, ministro da Fazenda, estampado nos novos bilhetes de banco, honra que nenhum país seriamente republicano deu a nenhum cidadão vivo, e que nenhum outro estadista ousaria aceitar…
Mas nosso publicista não se satisfaz com a mera denúncia dos abusos. E ainda que seu estilo contribua para demonstrar a gravidade dos fatos, a melhor parte vem logo a seguir, quando analisa e julga, sob o ponto de vista da ética, o que acabou de relatar:
Todas estas vaidades e todas estas exagerações pertenceriam somente ao domínio do burlesco se não revelassem um estado político lastimável, um verdadeiro retrocesso na dignidade e no decoro dos costumes políticos. Todo o desequilíbrio moral é funesto em suas conseqüências, embora risível nas suas formas; mas, quando revelado por quem governa, é uma verdadeira calamidade nacional. Nos negócios interiores de uma Nação a vaidade, o capricho, a ignorância e a boêmia são sempre fatais.
Conclusões que servem com perfeição à nossa história republicana, chegando à Brasília da última década.
Meses depois, Prado escreverá: “O militarismo de 15 de novembro passou depressa da traição para o ridículo”. E no ensaio As finanças e a administração da ditadura brasileira, sentencia: “A ditadura pode suster a execução das leis, deixar de lado o código. Não pode, porém, conter a risada universal”.
General incruento
Esta última citação exemplifica as principais qualidades estilísticas de Prado: objetividade mordaz e argumentação cristalina. A 30 de novembro de 1889, resume o que representa um governo comandado por militares: “Hoje, quando o marechal Deodoro pensar de um modo e os seus ministros de outro, quem cederá? A espada, que não tremeu ao ser desembainhada contra as instituições que o general julgara defender, não precisará mesmo reluzir de novo para fazer emudecer e sumir-se debaixo do pó da terra os novos ministros, talentosos patriotas, mas patriotas desarmados”. No ensaio publicado em 9 de janeiro de 1890, diante da procrastinação das eleições, conclui: “Falam na dificuldade de organizar as novas listas eleitorais, homens que não acharam difícil o mudar em uma manhã todas as instituições do seu país!”. Comparando as repúblicas brasileira e norte-americana, assevera: “[...] Entre elas medeia mais do que um século, mais do que a distância que vai de Boston ao Rio de Janeiro. Divide-as o imenso abismo que separa um Washington de um Deodoro da Fonseca”. Ao recordar a elogiável abolição dos escravos, que transformara os habitantes do país, sem diferenças, em homens livres, elogia Pedro II e lamenta: “A tirania militar entendeu de outro modo a sua missão; e, hoje, se viver sem leis, sempre à mercê do capricho alheio, é viver sem liberdade — pode-se afirmar que, no Brasil, não há senão escravos”. Com delicioso sarcasmo, ilustra, em junho de 1890, no que se transformara a política nacional: “Os partidos políticos, hoje, só poderão galgar o poder agarrados à cauda do cavalo de um general” — mutatis mutandis, a situação do país parece ter evoluído: dos rabos dos cavalos passamos, hoje, à cauda de uma estrela ou à barba de um demagogo…
Mas Eduardo Prado está longe de ser lacônico. Ele nos oferece páginas memoráveis, em que escarnece de republicanos tidos como proeminentes: Benjamin Constant, Rui Barbosa e Quintino Bocaiúva. Sobre este último, ministro das Relações Exteriores de 1889 a 1891 e negociador do Tratado de Montevidéu (cujo objetivo era solucionar a Questão das Missões com a Argentina), escreve críticas tão contundentes e acertadas que o próprio congresso não aceita ratificar os termos do acordo — a contenda seria resolvida apenas em 1895, graças ao brilhantismo do Barão de Rio Branco.
Sobre o ministro da Fazenda, a quem dedica inúmeras tiradas irônicas, comenta:
[...] Cada vez que o sr. Rui Barbosa telegrafa à Europa, a baixa é certa nos fundos brasileiros. A velha imagem da espada de Brenno fazendo baixar a concha da balança pode ser substituída pelo telegrama do sr. Rui Barbosa. A algaravia financeira que ele escreveu no seu funesto relatório veio tirar as últimas ilusões aos que esperavam ainda na competência do ministro das finanças do sr. Deodoro.
E ao analisar um trecho da logomaquia ruiana, decreta: “Toda esta literatura quer dizer que o sr. Rui Barbosa e seus amigos andam contentes de si mesmos e seguros do futuro. Podia isto ser dito mais simplesmente. O sr. Rui Barbosa é, porém, o homem das amplificações literárias e bancárias”.
No que se refere a Benjamin Constant, ministro da Guerra e, logo depois, da Instrução Pública, chama-o de “incruento general-de-brigada”, por ter participado da Guerra do Paraguai com “a rapidez mas não o brilho do relâmpago”:
Trabalhou muito no cargo de ministro da Guerra este felicíssimo militar! Entrou tenente-coronel e, ao cabo de cinco meses, saiu general-de-brigada e grã-cruz de São Bento de Aviz. Tudo isto foi conquistado rápida e incruentamente, sem prejuízo dos parentes, que receberam aceleradas promoções e vistosas condecorações. O sr. Benjamin Constant é positivista ortodoxo, mas há meio de acomodar-se sempre a gente com o céu, com o orçamento, e até com São Bento e Augusto Comte.
Aborreceu a traição
As palavras do anti-revolucionário vaticinam a desilusão das inteligências que, no primeiro momento, apoiaram o golpe. Anos depois, em agosto de 1909, durante a curta presidência de Nilo Peçanha, Euclides da Cunha — republicano convicto desde os tempos de estudante na Escola Militar, onde foi aluno de Benjamin Constant — escreveria a Otaviano Vieira:
[...] Tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os mirabeauxandam aos pontapés. Em cada esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais… É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem.
Defensor da monarquia, Prado não hesita, contudo, em criticá-la, culpando-a pela revolta militar, o que, em sua opinião, não diminui os erros dos golpistas: dentre eles, o de terem instituído um federalismo que abandonou os estados nas mãos das oligarquias locais, reforçando as práticas mandonistas e coronelistas da nossa classe política. E não seria exagero afirmar que a instabilidade republicana seguiu repercutindo através do tempo, condenando-nos a seguidas crises institucionais e a vários períodos de sinistra memória, como, por exemplo, o Estado Novo.
O que costuma ser um gênero menor, crônica jornalística banal, Eduardo Prado transformou — graças ao estilo, à inteligência e ao desassombro — em documento de inconformismo e revolta. Morreu jovem, aos 41 anos. No último parágrafo de Fastos da ditadura militar, ele gravou: “Ninguém duvidará [...] de que quem escreve estas linhas só atacou os dominadores do Brasil porque, como homem civilizado e do seu século, aborreceu a traição, amou a liberdade e detestou a tirania”. Sete anos antes de sua morte, Eça de Queirós lhe escreveu: “O que posso dizer afoutadamente é que V. nos faz sempre a mesma falta, e que não há frase mais repetida entre nós que: Se o Eduardo cá estivesse”. Qualquer um desses trechos poderia servir de epitáfio ao seu túmulo, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no qual emerge, da base de granito, uma coluna rósea cujo fuste, partido ao meio, representa a existência ceifada prematuramente — a sobriedade, na vida e na morte, foi a marca de quem afrontou as leis de exceção e as macaquices dos poderosos.

Trecho de Fastos da ditadura militar no Brasil:O sr. Benjamin Constant, que, sendo militar, não depende do exército e, sendo brasileiro, se coloca acima dos seus compatriotas, disse nada querer da república. É falso. Quis o lugar de ministro da Guerra com poder absoluto, fazendo parte de um governo ditatorial; quis um ordenado duplo do que tinham os ministros do Imperador; sendo um militar sedentário, havendo apenas feito nos acampamentos do Paraguai uma aparição incruenta que teve a rapidez mas não o brilho do relâmpago, o sr. Benjamin Constant quis logo da república uma promoção; e pensam que foi uma promoção regular para o seu posto imediato?

O autor:
Eduardo Paulo da Silva Prado nasceu a 27 de fevereiro de 1860, em São Paulo. Era filho de Martinho da Silva Prado e de Veridiana da Silva Prado, de tradicional família paulista. Faleceu na mesma cidade a 30 de agosto de 1901. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Na época, era colaborador assíduo do Correio Paulistano. Trabalhou como adido na delegação brasileira em Londres. Amigo do Barão do Rio Branco, colaborou da edição de Le Brésil en 1889, obra publicada por ocasião da Exposição Internacional de Paris, comemorativa do centenário da Revolução Francesa. Com o advento da república no Brasil passou a combater, em livros e jornais, os atos praticados pelo governo. Escreveu também em A década republicana, obra na qual colaboraram os mais destacados monarquistas brasileiros. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Deixou os livros: Viagens (1886-1902); Fastos da ditadura militar no Brasil (1890); Anulação das liberdades públicas (1892); A ilusão americana (1893); III Centenário de Anchieta (1900); e Coletâneas (1904-1906).


Publicado no jornal literário Rascunho.
Rodrigo Gurgel é escritor, editor e crítico literário.
Fonte: Midia sem Máscara

sábado, 2 de novembro de 2013

E como não...

E como não impressionar-se
Com o orvalho perolado
Marchando sobre a pétala
Qual lágrima após o sonho findado

E como não supreender-se
Em sentimentos amordaçados
Ao longo de anos de silêncios
Indevidos e admoestados?

Como não agora dizer
O que já devia ser dito em brados
E como e por que eu não diria

Se és o sul e o norte, em forma de poesia?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

FEIXES DE ALMA E LUZ

Porta aberta para as almas
Para vozes que tateiam faces
Com cantos que de canto em canto se fazem em luz
Alma aberta como portas
Em face do canto que produz
Pranto que produz a lágrima que pelo sol perfura
Colhe o prisma que se reflete
Que em mil cores se reproduz
Que a princípio a retina dilata,
Que expande o que os tímpanos captam,
Que pela forma da minha arte
Ao todo, não em parte
Abre tua alma em lágrimas
Que se fez de gota em gota

Feixes de luz. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Quero o país de volta - Entrevista com Bruno Tolentino

O poeta que passou trinta anos na Europa se diz horrorizado com o baixo nível, acha que o país regrediu e parte para a briga



Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino, menino carioca de família aristocrática, gosta de dizer que é de um tempo em que rico não roubava. O avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal e seus tios eram intelectuais, como os escritores Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquinio dos Santos, além dos primos Barbara Heliodora, a crítica teatral, e Antonio Candido, o crítico literário. Ainda era analfabeto em português quando duas preceptoras, mlle. Bouriau e mrs. Morrison, o ensinaram a conversar em francês e inglês dentro de casa. Tolentino saiu do Brasil em 1964 e, no estrangeiro, ocupou-se de árvores genealógicas de origem erudita. Orgulha-se de ter filhos com mulheres descendentes do filósofo Bertrand Russell e do poeta Rainer Maria Rilke. O mais novo, Rafael, de 8 anos, nascido em Oxford, Inglaterra, onde o pai ensinou literatura durante onze anos, é filho da francesa Martine, neta do poeta René Char. Bruno publicou livros de poesia em inglês e francês. Em 1994, lançou no Brasil As Horas de Katharina, e no fim do ano passado mais dois, Os Deuses de Hoje e Os Sapos de Ontem - todos ignorados pela crítica, pelo público e pelos curiosos.
Aos 56 anos, já de volta ao Brasil, Tolentino tem feito força para tornar-se herdeiro do embaixador José Guilherme Merquior, intelectual de boa formação e polemista musculoso. Tem conseguido aparecer. Brigou com os poetas concretos, depois com o que considera máquina de propaganda de Caetano Veloso e sua turma. Em seguida, com os críticos literários e os filósofos, elevando ainda mais o tom numa entrevista publicada por O Globo, duas semanas atrás. Fora do país, Tolentino ensinou em Oxford, Essex e Bristol e trabalhou com o grande poeta inglês W.H. Auden. Conheceu celebridades como Samuel Beckett e Giuseppe Ungaretti. Horrorizado com a possibilidade de ver o filho mais novo crescendo em escolas que ensinam as obras de letristas da MPB ao lado de Machado de Assis, abriu fogo contra o que considera o lado ruim de sua pátria, como explica em sua entrevista a VEJA:


VEJA - Por que tantas brigas ao mesmo tempo? 
TOLENTINO - Para ver se o pessoal cai em si e muda de mentalidade. O Brasil é um país vital que está caindo aos pedaços. Não quero sair outra vez da minha terra, mas não posso ficar aqui sem minha família, que está na França. Não posso educar filho em escola daqui. 

VEJA - Por que não? 
TOLENTINO - Foi minha mulher quem disse não. Educar um filho ao lado de Olavo Bilac, última flor do Lácio inculta e bela, que aconteceu e sobreviveu, ao lado de um violeiro qualquer que ela nem sabe quem é, este Velosô, causou-lhe espanto. A escola que ela procurou para fazer a matrícula tem uma Cartilha Comentada com nomes como Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e Caetano. O menino seria levado a acreditar que é tudo a mesma coisa. Ele nasceu em Oxford, viveu na França e poderá morar no Rio de Janeiro. Ele diz que seu cérebro tem três partes. Mas não aceitamos que uma dessas partes seja ocupada pelo show business. 

VEJA - Qual o problema? 
TOLENTINO - Minha mulher já havia se conformado com os seqüestros e balas perdidas do Rio, mas ficou indignada e espantada pelo fato de se seqüestrar o miolo de uma criança na sala de aula. Se fosse estudar no Liceu Condorcet, em Paris, jamais seria confundido sobre os valores do poeta Paul Valéry e do roqueiro Johnny Hallyday, por exemplo. Uma vez entortado o pepino, não se desentorta mais. Jamais educaria um filho meu numa escola ou universidade brasileira. 

VEJA - Não é levar Caetano Veloso a sério demais? Ele não é só um tema de currículo, entre tantos outros? 
TOLENTINO - Não. Ele está também virando tese de professores universitários. Tenho aqui um livro, Esse Cara, sobre Caetano, uma espécie de guia para mongolóides, e a mesma editora desse livro me pede para escrever um outro, sob o título Caetano Se Engana. É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento não é cultura. 

VEJA - O que você tem contra a música popular? 
TOLENTINO - Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. Não se trata de cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música popular brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se confunde com a erudita. Então, como é que letra de música vai se confundir com poesia? 

VEJA - O senhor não está ressentido por ele ter assinado um manifesto contra um artigo seu sobre uma tradução do poeta Augusto de Campos? No fundo, parece que o senhor está querendo aparecer à custa deles. 
TOLENTINO - Não tenho ressentimento nem ciúme. Nem tenho nada contra quem assina manifesto. Se você vê um amigo seu brigando na rua, o mínimo que pode fazer é ir lá apartar. Foi o que ele fez no caso do Augusto de Campos. Só que assinou um cheque em branco. A princípio achei que ele tinha entrado de gaiato, e lhe dei o benefício da dúvida, sobre uma questão muito delicada de tradução e de cultura que ele não está capacitado para julgar. Nem ele nem Gal Costa. Que intelectuais são esses? Se os irmãos Campos não sabem inglês, imagine eles. 

VEJA - Os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos não sabem inglês? 
TOLENTINO - Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por exemplo, traduziram Rainer Maria Rilke e criaram a frase "ele tem um pássaro", que é literal, mas que em alemão quer dizer que alguém tem uma telha a menos, é meio doido. São péssimos poetas e péssimos escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber. 

VEJA - Por que só o senhor, e não outros críticos, diz essas coisas? 
TOLENTINO - Na República das Letras ainda estamos à espera das diretas já. A usurpação do poder legal por vinte anos deixou-nos seus legados nas patotas literárias que desde então controlam a entrada em circulação, ou a exclusão pelo silêncio, de livros, autores, obras inteiras. Nas redações dos jornais como nas universidades prevalece a censura, e o único critério para sancionar uma obra parece ser o bom comportamento do neófito, sua genuflexão aos ícones da hora. Nossa crítica suicidou-se matando o diálogo, o debate e a polêmica. Mascarados de universitários, esses anõezinhos conseguem dar a impressão de que a inteligência nacional encolheu, que em Lilliput só se sabe da cintura para baixo. Quem já ouviu falar de Alberto Cunha Melo, que vive escondido no Recife, e é nosso maior poeta desde João Cabral? São dele estas palavras: "Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem". Mas José Miguel Wisnik ora é crítico, ora é letrista e compositor, portanto é catedrático. Os violeiros empoleiraram-se nas cátedras e Fernando Pessoa virou afluente da MPB. Não é à toa que até em Portugal os brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhada logo à primeira frase: "Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a banda passou e..." É preciso perguntar dia e noite: por que Chico, Caetano e Benjor no lugar de Bandeira, Adélia Prado e Ferreira Gullar? 

VEJA - Por que o senhor acha os críticos brasileiros ruins? 
TOLENTINO - O que os críticos disseram sobre meus trinta anos de poesia? Só, desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não suficientemente progressista. Que eu, o escritor Diogo Mainardi e - como é mesmo o nome do marido da Fernandinha Torres? - o diretor Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos de gente famosa. Quer dizer, chamam a atenção para a pessoa e não para a obra. E toda pessoa é discutível. Eu sou meio apalhaçado mesmo. A minha biografia é interessante, meio cinematográfica, e assim é como se eu não tivesse escrito nada. Uma espécie de Ibrahim Sued das letras. 

VEJA - Mas o que aconteceu com os críticos para que se tornassem tão incapazes, na sua opinião? 
TOLENTINO - A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. É uma gente venal, vendida, que controla as nomeações para as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco como eu? Todos, de Roberto Schwarz a David Arrigucci, foram formados pelo meu primo Antonio Candido, que é um geriatra nato. 

VEJA - Caramba... Não sobra nenhum crítico brasileiro? 
TOLENTINO - Sobra, evidentemente, Wilson Martins, que não tem lá muito gosto poético, mas enfim... 

VEJA - O senhor também não sobra? 
TOLENTINO - Em vários sentidos. Não tenho onde escrever. Sou herdeiro, e me considero assim, da combatividade crítica de José Guilherme Merquior. Crescemos e fomos amigos juntos, tínhamos idéias convergentes embora nem sempre coincidentes. Quando ele morreu, em 1991, houve um grande suspiro de alívio entre nossos crititicos e poetômanos. Infelizmente ele era embaixador. Eu não sou embaixador de nada. Essa gente está morta de medo de que eu venha a ter uma tribuna. Não me importa ser celebrado lá fora. Não faço falta lá, há muitos outros como eu. Aqui, com esta independência, cultura, erudição e combatividade, não tem outro que nem eu. 

VEJA - Sem embaixada, o senhor vai ser só poeta? 
TOLENTINO - Minha obra poética está basicamente terminada. Escrevi poesia por mais de trinta anos e não conheço nenhum outro poeta, além de Manuel Bandeira, que tenha conseguido escrever bem além dessa média. A partir daí, decai. Estou transferindo o meu esforço para o ensaio. Falar, por exemplo, dos males que a ditadura causou ao país me parece cada vez mais um sintoma do que uma causa. É um sintoma do Febeapá, vem no bojo dele. A imbecilidade já crescia. A ditadura simplesmente institucionalizou a falta de respeito pela realidade, pelo próximo, pela legalidade. A verdade foi substituída pela verossimilhança, a literatura, pela imitação da literatura. 

VEJA - O senhor poderia dar exemplos disso? 
TOLENTINO - Foi Wilson Martins quem levantou essa idéia, ao dizer que as obras de Chico Buarque e Jô Soares eram imitações da literatura. Auden, o Drummond lá dos ingleses, também dizia algo parecido. A gente lia um cara e concluía que ele era muito ruim. Auden discordava, dizendo que ele era muito bom. "Faz a melhor imitação de poesia que já li", dizia. Parecia piada mas não era. 

VEJA - O senhor acha que a imitação é ruim? 
TOLENTINO - A imitação da literatura se dá quando se fecha no círculo de ferro na modernidade. Ela obriga o leitor a seguir moda, busca efeito imediato, como se tudo começasse por você, naquele momento. A verdadeira literatura está sempre acuando tudo que a precedeu. Quincas Borba, de Machado, contém toda a novelística russa, e também Balzac. Wilson mostrou com muita acuidade e mordacidade que os romances de Chico são uma reedição do nouveau roman, que já morreu. Agora morreu a última representante dele, Marguerite Duras. Conheci toda aquela gente do nouveau roman, Alain Robbe-Grillet, Michel Butor, e saí correndo. Chato existe em todo lugar, não só no Brasil. Mas Wilson foi injusto com a imitação do Jô. É uma coisa que não pretende ser mais do que aquilo mesmo, divertir. 

VEJA - Por que o senhor não vai ensinar o que sabe nas universidades? 
TOLENTINO - Só entro numa universidade disfarçado de cachorro ou levado por uma escolta de estudantes. Sou um vira-lata muito barulhento. Não vão me convidar para nada porque eu quero acabar com os empregos e mordomias deles. Quero que eles passem por todos os exames de Oxford para ver se sabem mesmo alguma coisa. 

VEJA - Então as universidades não servem para nada? 
TOLENTINO - A escola pública desapareceu. A fórmula de sobrevivência do país é a trilogia emprego público, de preferência com aposentadoria acumulada, condomínio fechado e plano de saúde. Esse é o apartheid construído por uma elite analfabeta e totalmente irresponsável que entregou nossa cultura. Nem estou falando da nossa classe média, que tem dinheiro para gastar em boates e shows e sair de lá gargarejando cultura. 

VEJA - O senhor tem acompanhado a produção intelectual das universidades brasileiras? 
TOLENTINO - O departamento de filosofia da Universidade de São Paulo nunca produziu filosofia nenhuma, não por inépcia ou preguiça, mas por um estranho espírito de renúncia parecido ao espírito de porco. Cultivavam a crença de que só poderia nascer uma filosofia no Brasil "ao término de um infindável aprendizado de técnicas intelectuais criteriosamente importadas", como diz um professor de lá. Mais urgente do que filosofar era macaquear os debates dos "grandes centros" produtores de cultura filosófica. O que significava tomar o padrão europeu do dia como norma de aferição do valor e da importância do pensamento local. Imaginando ou fingindo preservar a mente brasileira de uma independência prematura, o que os maîtres à penser da USP fizeram foi apenas incentivar a prática generalizada do aborto filosófico preventivo. Não espanta que, por quatro décadas, o "rigor" (com aspas) uspiano não produziu outro resultado senão o rigor mortis de uma filosofia que poderia ter sido o que não foi. 

VEJA - Mas José Arthur Giannotti escreveu um livro de filosofia, Apresentação do Mundo, que foi muito elogiado... 
TOLENTINO - É, ele escreveu um besteirol sobre Ludwig Wittgenstein saudado em suplementos de várias páginas como marco do nascimento da filosofia no Brasil. É uma audácia depois de Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Pereira da Silva e Olavo de Carvalho. Nós temos uma filosofia nativa, isso sem falar da filosofia de cunho religioso, teológico, que eu não vou citar porque sou católico e vão dizer que estou puxando a brasa para a sardinha da Virgem Maria. Passei cinco meses garimpando nas páginas daquele livro e não encontrei nada que não fosse uma leitura do que Wittgenstein acha da dificuldade lingüística de compreender a realidade. Isso a gente já sabe, a partir do próprio Wittgenstein. Uma filosofia nacional não tem nada a ver com isso. 

VEJA - Tem a ver com o quê? 
TOLENTINO - A cultura filosófica brasileira é quase nula. Nossos professores gastaram décadas lendo Marx, em vez de Husserl. Aqui só dá o tripé Kant, Hegel e Marx. E onde está a grande tradição escolástica que vai de Aristóteles a Husserl? Isso não é lido nem discutido aqui. Mas existe uma filosofia brasileira. Reale e Olavo de Carvalho, que não se formaram em lugar algum, não perderam tempo com essa estupidez. Foram estudar e aprender as tantas línguas que falam. Eu, quando tenho dificuldade com latim, grego ou alemão, é para eles que telefono. 

VEJA - O senhor não está exagerando, sendo duro demais? 
TOLENTINO - Não. Não passei nenhum dia aborrecido aqui. Sempre encontro gente inteligente. Quando cheguei à Europa, não tive nenhum complexo de inferioridade. É verdade que eu conheci em casa o que o Brasil tinha de melhor. Faço parte do patriciado brasileiro. E não via diferença entre Ungaretti e Manuel Bandeira, só de língua. Era a mesma coisa. Não havia um Terceiro Mundo na minha cabeça. Eu, quando pequeno, conheci Graciliano Ramos e Elisabeth Bishop. Só havia gente dessa categoria. 

VEJA - Dá a impressão de que só agora se começou a falar e a escrever besteira no país... 
TOLENTINO - O besteirol, se havia, estava lá longe, nos cantos. Hoje ele está no centro. Tem razões mercadológicas, de dinheiro. Os artistas devem ganhar muito, muito dinheiro, para ir gastar em Miami. Só não é possível que esses senhores usurpem a posição do intelectual. Eles são um formigueiro com pretensão a Everest. 

VEJA - Não é bom para o país ter um intelectual na Presidência da República? 
TOLENTINO - Votei no Fernando Henrique Cardoso porque era uma oportunidade única, desde Rui Barbosa, de ter um intelectual no poder. E o que ele fez na sua primeira entrevista coletiva? Citou Machado de Assis ou Euclides da Cunha? Não. Citou o mano Caetano. Uma coisa tão espantosa quanto Rui Barbosa, se tivesse ganho a eleição, citasse Chiquinha Gonzaga. O Brasil que eu conheci, e do qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o Brasil. Quero saber quem seqüestrou a inteligência brasileira. Quero meu país de volta.

Fonte: Revista Veja